Rompendo as bolhas de cristal que separam uma vida de privilégios da cruel realidade comum, Sean Baker imagina uma protagonista fascinante que garante seus debates pelo humor
A reinvenção do conto de fadas que é Anora, vem com um olhar para as classes típico da filmografia de Sean Baker, com protagonistas que vivem na estigmatização e são personagens além das temáticas, sem que suas existências estejam automaticamente ligadas a uma condenação, piedade ou idealização. Ani (Mikey Madison), trabalhadora do sexo, é contextualizada logo de cara pelo ambiente em que exerce sua função, mas ainda que as luzes neon atestem alguma beleza glamurosa ao seu redor, seu emprego é colocado pela encenação como qualquer outro, categoricamente rotineiro, com regras, funções e repetições atreladas a cada peça que faz a roda daquele sistema girar. Do ciclo em que seu corpo é ferramenta essencial para ganhar o capital, até o espaço comum em que é apenas mais uma pessoa vagando entre uma jornada de trabalho e o descanso em um bairro afastado, em que claramente as muitas notas colocadas nos finos fios de sua calcinha não são suficientes para garantir nenhum conforto além do básico, Anora é apenas uma mulher que luta para garantir sua sobrevivência. A gata borralheira sugada pelo mundo capitalista já teria dificuldades para sonhar com uma história de princesa, mas em sua condição de trabalhadora do sexo, objetificada não somente por sua natureza enquanto mulher, mas também pela profissão, teria Ani alguma chance de viver um conto de fadas entre as luzes neon e o cinza da cidade grande? E se o aparecimento do herdeiro oligarca russo (Mark Eydelshteyn) não tem lá muita semelhança a um príncipe encantado, não é à toa, nesse globo de cristal criado por Baker todo homem será patético e esperar qualquer maturidade que os retrate além de meros garotos é um delírio que apenas uma mulher sem nenhuma expectativa de final feliz pode se apegar para garantir a chance de uma vida melhor.
Nesse encontro de Ani e Ivan, Anora coloca o espectador dentro de uma bolha de privilégios que não seria facilmente acessada pela protagonista não fosse justamente seu trabalho e alguma sorte do acaso. Veja, ela não pertence a esse espaço em que tudo é possível e as responsabilidades não existem, é um adereço colocado lá e que pode ser removido a qualquer momento. Porém, pelo delírio que essa promessa de vida irreal traz, Ani se torna intoxicada pela chance e mal percebe que a única coisa que a separa do mundo cinza real é uma fina cúpula de cristal controlada por poderes muito maiores do que ela. Essa expectativa atrelada diretamente pela protagonista à existência de seu príncipe se prova ingênua por ser ridiculamente claro o quanto Ivan é totalmente imaturo e patético. O jovem casal, destacado pela idade do menino, 21 anos, que enxerga Anora como mais velha com seus apenas dois anos a mais, possui um abismo social entre eles que torna a mulher uma pessoa muito mais frágil nessa situação, como de costume. Mas, pelo convite à entrega, o filme cria então esse mundo de sonho colorido, com lentes que distorcem tudo ao redor deles, os inserindo realmente em uma bolha, de um céu artificial de vidro que indica um descolamento da realidade. Ani vive um sonho que é apenas um dia comum de Ivan e a regra do universo é que a corda sempre arrebentará do lado mais fraco.
Nessa jornada, Anora força então que o vidro se quebre para cair em uma espiral de absurdos similar a Depois de Horas, mas com as cores de Tangerina no horizonte e enquanto o longa vai gradualmente adentrando a humanidade de Ani, Baker não torna certas temáticas acerca de sua profissão mais importantes do que a observação dessa masculinidade privilegiada e imatura esmagando a fragilidade de quem é visto como abaixo deles. A comédia é veículo a partir da existência de Anora, uma mulher pequena, enxergada como uma menina pelos homens que não estão preparados para a força que ela carrega. Sua postura firme em relação aos grandes poderes dessa máfia russa diminuída pelo humor que o filme emprega, castrando suas posições e removendo qualquer poderio proveniente de armamentos, é contrastada pelo olhar de um dos capangas, o ponto que Baker usa para explorar a vulnerabilidade mais humana da mulher. Se todos esperam dela menos força, ela espera de Ivan mais maturidade, ambas características alteradas pela própria posição social em que os dois estão. As dificuldades e um mundo masculino opressivo de objetificação tornam Ani combativa e intimidadora, assim como o dinheiro e os privilégios tornam Ivan um imbecil infantiloide.
No entanto, parece que Baker não vê como suficiente esse exercício que mantém Ani como forte e ainda assim consegue enxergar sua vulnerabilidade através da postura, e sua comédia que ri com ela da sucessão de absurdos em que foi enfiada pela ideia do sonho de final feliz. O longa caminha em seu final para uma observação dramática que desacelera o tom antes proposto para realmente permitir que Ani seja vista em suas maiores fraquezas. Talvez não exista espaço e tempo suficiente para essa proposta já um tanto tardia e que parece trair o restante. É permitido a Anora sonhar? A resposta mais completa vem ao longo de toda a narrativa que racha o globo de neve para que a realidade cinza traga a gata borralheira de volta a seu lugar. A resposta mais crua, que tenta explorar a psique dessa protagonista com compaixão, é mais uma corrente de questões que se levantam aos minutos finais. Baker quer dar mais profundidade a algo já extremamente complexo, como se a comédia não fosse o gênero adequado e o riso não permitisse o pensamento mais digno que o filme quer deixar. Bobagem, a existência de Ani em cada cena é suficiente para compreender seu papel no mundo e o quanto sua jornada escancara questões de gênero, classe social e estigmatização. Apelar a uma certa sensibilidade que vem no impacto que o drama insere, em seus longos respiros, closes e melancolia, é uma ferramenta possível, porém não muito corajosa, mas ainda assim não diminuí o grande trabalho geral de construir uma personagem totalmente fascinante em um filme tão cativante quanto.
Nota da crítica:
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