Continente, filme brasileiro de terror que estreia no dia 31 de Outubro, teve exibições na 48ª Mostra Internacional de São Paulo. Eu e o convidado e também crítico de cinema, Victor Russo, entrevistamos Davi Pretto, o diretor do longa e buscamos entender suas referências e interesses. Confira abaixo a conversa:
Raissa Ferreira: Sinto uma referência muito forte da Claire Denis, sobretudo de Desejo e Obsessão, no filme. Foi algo que você pensou, e, se sim, como ressignificar aquelas imagens para um contexto do agro brasileiro? Quais outras referências você buscou?
Davi Pretto: Os filmes que amo me habitam, fazem parte de quem eu sou, do meu DNA, mas não retorno a eles como meras referências. Sobre Claire Denis, em 2011, a Sala P.F. Gastal em Porto Alegre organizou uma retrospectiva completa dos filmes dela, todos projetados em película, inclusive com a presença dela para um debate. Foi histórico. Ali, assisti a todos os filmes dela e desde então o cinema dela passou a ser muito importante pra mim, tanto quanto os cinemas do Oshima e do Pialat, a quem Claire Denis também se referencia muito. Mas enfim, em Continente, quem veio antes foi a história, e não o gênero do filme. O horror carnal e sangrento emergiu aos poucos na escrita do roteiro, se revelando para nós mesmos como uma maneira de traduzirmos as sensações que queríamos compartilhar da história. Curiosamente, talvez, a maior referência na minha cabeça, em termos de estrutura do roteiro, era o "Audition", do Takashi Miike, pela ruptura radical de gêneros. Amo filmes que saem de um gênero para o outro ou que brincam com os limites do próprio cinema de gênero.
Raissa: Continente traz um terror bastante corporal e visceral, com movimentos, principalmente da Amanda, que parecem uma dança com um quê de possessão. Como foi esse trabalho de preparação corporal dos atores e como transformar isso em estímulos para o espectador?
Davi: Foi um trabalho de imersão e de investigação constante. Iniciou durante a preparação com o elenco, ao longo de duas semanas em Porto Alegre, onde a gente conversou muito sobre como a história ecoava em cada um deles, como eles se identificavam nas angústias e dramas das personagens que iriam viver e como viam e sentiam o horror que existia no vilarejo da história. Disso, a gente começou a investigar as possibilidades de "dar corpo" à sede de sangue, à abstinência, à raiva e ao desejo no corpo deles, através de improvisos corporais, sem tentar racionalizar muito esses experimentos. E essa investigação seguiu até o set de filmagem, a cada take. Para mim era fundamental a criação de um espaço seguro na filmagem para que o elenco - junto da câmera e do som no set - pudessem habitar uma espécie de transe e de imersão sensorial na cena. Muitas cenas, inclusive do acerto no galpão, foram criadas assim, experimentando take a take, e muitas vezes fazendo vários takes sem cortar para manter esse transe imersivo e instintivo.
Victor Russo: Sinto uma crescente em cineastas brasileiros, como Juliana Rojas, Marco Dutra, Gabriela Amaral de Almeida, entre outros, que se interessam em buscar no terror novas linguagens e combinações com outros gêneros para falar sobre o Brasil. Nesse sentido, Continente se utiliza de forma bem frontal com o gênero para adentrar esse mundo do agro e falar da construção dessa sociedade a partir do sangue, da violência, quase sempre de trabalhadores. De onde parte essa ideia e como você pensou em transformar esses e outros temas em imagens e sensações?
Davi: O gênero surgiu, como falei, naturalmente na escritura do filme. Pela vontade nossa de encontrar um outro olhar para um tema tão crucial e urgente no Brasil, mas já retratado várias vezes no cinema brasileiro, que são as relações históricas de violência, dominação e subjugação, heranças do colonialismo tão presentes no nosso país. Nossa vontade era colocar novas perguntas para esse tema tão não-resolvido na nossa sociedade. E o horror, tanto como um gênero que surge em dado ponto no filme, como visto de maneira frontal, brutal e, acima de tudo, ambígua, nos pareceram uma chave. Outra chave para nós era a relação entre violência e desejo dentro desse sistema imposto de dominação, por isso a ambiguidade da violência mostrada no filme era fundamental. Uma violência assombrosa, repugnante mas ao mesmo tempo também desejável. Como criar imagens e sons que dessem conta disso tudo era nosso objetivo e desafio maior.
Victor: Há algo de bastante específico no longa que é esse pacto local. O quanto isso conversa com uma herança escravista no país e a manutenção das classes?
Davi: Conversa certamente se pensarmos nessa herança da escravização que criou um sistema violento que não só permanece, como se aperfeiçoa ao longo do tempo. E acredito que o desejo tem um papel central nisso. Não o Desejo como 'falta' ("desejo porque me falta..."), mas o Desejo como "produção do próprio desejo" ("eu desejo porque vejo que o outro deseja"). Isso, por si só, ao meu ver é um grande horror. Estamos imersos em um pesadelo social que não conseguimos imaginar (e menos ainda por em prática) uma alternativa, em grande parte por causa dos nossos desejos, que pouco entendemos, pouco discutimos e pouco queremos controlar. Crítica do filme.
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