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Foto do escritorRaissa Ferreira

48ª Mostra | Filhos

Com imagens brutais, thriller de Gustav Möller desafia e provoca quem assiste como cúmplice dessa vingança em que o poder oscila nas mãos dos personagens

Sons Gustav Möller

Os tons acinzentados que banham a fotografia de Filhos (Sons) acertadamente criam a atmosfera do presídio que não é somente um dos únicos cenários do longa, mas também o estado de espírito de seus personagens. Eva (Sidse Babett Knudsen) é apresentada como uma trabalhadora nesse local, cuidando de homens que mais parecem meninos, sempre gentil, fazendo rodas de meditação e aparentando ser uma pessoa suave em relação ao espaço em que se encontra. A chegada de um jovem de postura ameaçadora abala suas estruturas logo de cara por sua imagem vista em câmeras de vigilância. Quando essa mulher reconhece o novo detento, Gustav Möller pisa fundo em um jogo imperceptível que já havia iniciado desde o começo com a pessoa espectadora, de manipular percepções e provocar eticamente. O desconforto de Eva dá pistas de que Mikkel (Sebastian Bull Sarning) poderia ser seu filho e, a princípio, pode-se pensar que ela pedirá sua transferência para o mais longe possível desse impasse, porém, ao contrário, a agente penitenciária faz a solicitação para trabalhar ao lado do jovem, na ala de segurança máxima. A transição é brusca, os “bom dia” da mulher são confrontados por homens na simpáticos, enormes e ríspidos, e enquanto ela tenta provar que pode se adaptar a um lugar mais pesado, seu fascínio por Mikkel aumenta sem que quem assiste possa compreender totalmente suas intenções. A revelação vem com uma mudança de tom, ao mesmo tempo em que fica claro que o que Eva quer é, na verdade, vingança, a personagens se altera a algo menos inofensivo, suas nuances complexas desabrocham e uma nova expressão dá as caras. O jogo que se cria a partir do embate entre os dois personagens, se torna uma alternância de poderes que é repleta de imagens brutais, seja pela força física ou mental, desafiando quem assiste a se envolver como cúmplice secreto.


De um lado, Eva usa seu poder como trabalhadora no presídio para criar pequenas, mas bastante questionáveis, vinganças contra o assassino de seu filho. Negando cigarros, ignorando chamadas para ir ao banheiro, cuspindo em suas refeições e jogando presentes fora. Abre-se espaço para pensar se esse sempre foi seu plano, trabalhar nesse lugar para que um dia pudesse o confrontar, ou se foi o acaso que agiu e ela simplesmente aproveitou a chance. Do outro, Mikkel é apresentado como alguém violento e sem escrúpulos, mas, surpreendentemente, tudo que a mulher faz contra ele parece infundado, gerando sua revolta pelas injustiças e plantando dúvidas nos cúmplices do outro lado da tela. A observação provoca, no limite entre um possível questionamento de quem seria o verdadeiro vilão nesse cenário, mas, mais do que isso, a problemática ética de usar um aparato do estado que poderia reabilitar pessoas, para as condenar sistematicamente em uma justiça pessoal e individual. Quando Eva passa do ponto, cruza a linha das pequenas atitudes para plantar drogas e armas, o que acaba em uma agressão física, perde o controle em suas ações e tenta recuar, mas é tarde demais. O jogo de poder se inverte e quem pega o controle para brincar é Mikkel. Se em todo o filme as imagens criaram uma tensão absurda entre ambos, ressaltando a ausência de barreiras físicas nas cenas em que os dois se colocam próximos e a ameaça à integridade de Eva grita silenciosamente, isso se torna ainda mais evidente a partir do momento em que o detento começa a chantagear a mulher.


Há uma cena específica em que Eva e Mikkel meditam em uma grande sala vazia, sentados frente a frente, o jovem insiste que ela feche os olhos também. Sua ameaça mental é brutal para a mulher, a atuação de ambos é contida mas poderosa para transparecer suas intenções e receios. Assim, ele sempre a vence na força sem encostar um dedo nela. Quando Eva cede e fecha os olhos, a iluminação lentamente escurece ao seu redor, construindo um desespero palpável. Nada separa os dois personagens, nada impede que Mikkel avance contra a mulher, o fechar os olhos é como a última instância de segurança sendo perdida e a cena convida a pessoa espectadora a se colocar na posição de Eva, nessa mesma escuridão de insegurança. É claro que Filhos pretende desde o início que a observação fique do lado da mulher (não exatamente a seu favor, mas por um ponto de vista próximo a ela), primeiro manipulando a perspectiva e depois provocando que se questione essa escolha - que é inevitavelmente do próprio filme, impossível de se escapar - por conta das atitudes problemáticas de Eva. De certa forma, acompanhar o ponto de vista dela e absorver a empatia entregue, é ao mesmo tempo torcer pela personagem e temer por sua vida, tornando Mikkel de qualquer forma um vilão por sua imprevisibilidade. Não é apenas o passado que o condena, mas o fato de quem assiste estar constantemente observando seus ímpetos agressivos sem saber o que esperar de seu próximo passo. 


A chantagem que é até muito bem compreendida, visto tudo que Eva fez a ele, coloca ambos em um jogo sem saída. No entanto, há uma ambiguidade na protagonista, ela é tão vulnerável perante seu inimigo, que tememos quando não há barreiras entre os dois, quanto tem vantagens violentas contra ele. Mikkel a oprime mais mentalmente, enquanto Eva se aproveita do aparato ao seu redor para o vencer fisicamente, é o caso da agressão que gera todo o descontrole, da exaustão de todas as punições e solitárias que ela o faz passar, e quando ela quase o mata nas últimas consequências. Nos segundos que antecipam o entendimento de vida ou morte do detento, Filhos parece dizer que apenas um dos dois pode sobreviver a isso tudo e, nesse tempo, desafia mais uma vez os limites éticos que se dão por abraçar o ponto de vista dado e construído no longa para pensar a própria humanidade dos cúmplices espectadores. É aceitável ficar do lado desse assassinato e de todas as violências que Eva provoca em sua vingança? O sistema carcerário existe para punir e apenas isso? São algumas das perguntas que Gustav Möller levanta em sua tela ao aproximar Eva do público, retratando a pessoa do outro lado da grade como um monstro a ser combatido. 


 

Nota da crítica:

4.5/5


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