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Foto do escritorRaissa Ferreira

48ª Mostra | O Senhor dos Mortos

Romântico e satírico, David Cronenberg projeta em um universo estéril e vazio suas ironias de uma sociedade deprimente

O Senhor dos Mortos (The Shrouds)

A projeção de David Cronenberg em seu próprio protagonista começa uma relação que faz de O Senhor dos Mortos (The Shrouds) um filme estranhamente romântico, mas que também coleciona sátiras a uma sociedade deprimente em que o virtual consome o orgânico e todos estão completamente paranoicos. Karsh (Vincent Cassel) desenvolve maneiras peculiares de lidar com a morte de sua esposa, um luto que Cronenberg conhece bem, mas se o diretor faz filmes como sua forma de terapia, o milionário canadense inventa dispositivos funerários para observar sua amada em decomposição. O longa é ambientado em um universo estéril e vazio, os poucos excêntricos ao redor do protagonista pouco estranham suas práticas, assim, a única personagem de fora que é apresentada ao cemitério com câmeras ao vivo das tumbas e a todos os desabafos de Karsh, logo é removida, ou melhor, se retira rapidamente, afinal, ela não pertence a esse lugar. A encenação fria remete a um cinema e a um mundo em que o orgânico, o que é vivo e pulsante, está perdendo espaço para a artificialidade, um comentário nada novo na filmografia do pai do body horror. Mas há também uma ironia com os estadunidenses e seus inimigos imaginários, projetados na trama de investigação que parece totalmente sem interesse em uma resposta, e, também, sem algo concreto a se desvendar, mas com diversos apontamentos sobre a China, a Rússia e a própria tecnologia como apoio e vilão ao mesmo tempo. Entre uma obsessão pelo corpo, talvez uma demonstração de amor de Cronenberg, e a briga contra a inteligência artificial em muitas lutas sem sentido, personagens são ridicularizados por suas teorias de conspiração, enquanto o bom e velho horror corporal existe na ligação mais carnal do longa, uma que está cada vez mais escassa.


Os desejos sexuais em O Senhor dos Mortos vem da morte ou da paranoia, mas o sentimento, o amor, só existe pela carne. Há na obsessão de Karsh pela imagem da esposa uma representação de exploração sem limites, que não respeita nem mesmo a decomposição, ilustrando telas e mais telas com esqueletos em zooms cada vez mais bem definidos. Esse homem rico é também motivo de riso, com seu tesla que se dirige sozinho, a assistente que claramente é manipulada pelo cunhado e como escuta cada teoria sem sentido dos outros. Incapaz de superar o luto, ou melhor, nem tentando, encontra na imagem da cunhada (Diane Kruger), cujo corpo é igual ao da esposa morta, o conforto de sua perda. Ela, por sua vez, vê seu tesão por como o homem entra em suas teorias. Em uma trama que aborda tantos sentimentos, é engraçado como Cronenberg escolhe a abordagem mais limpa e rígida, como se para estar nesse mundo dos mortos fosse preciso se portar como um cadáver. Mais do que isso, a invasão da tecnologia como meio até de lidar com as próprias emoções afeta essa atmosfera e em uma realidade em que hollywood já substitui os vivos pelas inteligências artificiais, fica difícil vislumbrar um futuro de carne, osso e sentimento. 


Então, a investigação que de alguma forma move O Senhor dos Mortos é na verdade mais uma desculpa para desenvolver todas essas muitas ideias. Descobrir quem hackeou o sistema e vandalizou as tumbas digitais é tão relevante que os clientes com os quais Karsh tanto se importa nunca aparecem, nem sequer reclamam. Tudo é meio para Cronenberg dizer da forma mais estranha que sente falta de sua esposa e satirizar o mundo em que vivemos hoje, em decomposição junto com o cinema, com o orgânico sendo consumido pelo virtual, o desejo pulsante perdendo espaço para a frieza. É algo que já começou a ser discutido em Crimes do Futuro e, nesse sentido, os filmes parecem próximos tanto em seus temas e abordagens, como na recepção do público. Cronenberg é sólido em sua forma de fazer cinema, caminha em frente com suas ideias e seus corpos servindo ao propósito da imagem sempre encontram jeitos de se encaixar, mesmo que logo menos nada mais seja vivo e tudo seja artificial. 


 

Nota da crítica:

3.5/5


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