Fernando Coimbra faz um filme shakespeariano da contravenção brasileira que adentra a violência com o riso de um descontrole coletivo
Mais de 10 anos atrás, Fernando Coimbra lançava O Lobo Atrás da Porta, essa história todo mundo já conhece ou já escreveu e, talvez, o legado desse filme tenha criado certas expectativas em uma nova obra do diretor que também se passa no Rio de Janeiro. Azar o de quem espera algo e se decepciona, sorte de quem aproveita para ser surpreendido, porque Os Enforcados não é nada do que dá pra imaginar dentro desse espectro. Regina (Leandra Leal) e Valerio (Irandhir Santos) iniciam a trama exibindo seu fetiche pela violência, mas uma simulada, controlada dentro de suas próprias regras para seu próprio prazer. O marido, na verdade, quer escapar da contravenção e do pouco dinheiro que entra, sabe-se lá como. A esposa ambiciosa quer a reforma da casa dos sonhos e vê no destino, e na sorte, a chance de abocanhar uma bolada. O lar em ruínas pelas obras é retratado, no começo, muito ao fundo do casal, visto bastante unido, até que essas estruturas desconstruídas passam a afetar a cumplicidade deles. Quase uma adaptação de Shakespeare com ares do cinema brasileiro dos anos 70, Coimbra ilustra o imaginário desse mundo de crime a partir de um cotidiano excêntrico, em que a violência é elaborada em tons cômicos, com uma montagem que martela os acontecimentos cada vez mais fora de controle. É recente o sucesso da série Vale o Escrito que, mesmo mostrando um lado sombrio de sangue e morte do Jogo do Bicho, é inevitavelmente engraçada, algo que o cineasta (que também assina o roteiro) abraça em sua forma mais exagerada e que não tem pretensão alguma de fazer críticas ou posicionamentos morais, apenas se divertir com um estado caótico das coisas.
A partir do momento em que o casal cruza uma linha, em que seu jogo sexual sai do teatrinho e perde o controle pintando as paredes e o chão com sangue do tio de Valerio (Stepan Nercessian), a porteira se abre para que cada próxima decisão seja pior do que a anterior. Se o herdeiro da contravenção de Pavuna antes queria escapar do mundo do crime, ele vai perdendo a cabeça cada vez mais, sem compreender o que é vingança e o que é benefício nisso tudo. Mas, não há enganos em Os Enforcados, nada é acidente, são exageros deliberadamente farsescos. E enquanto existe esse lado meio mafioso meio shakespeariano, há também um cotidiano muito brasileiro encenado em mais excessos. Leandra Leal e Irene Ravache protagonizam algumas das cenas mais interessantes e divertidas de mãe e filha, em uma dinâmica de desconfiança e manipulação. Ninguém nesse filme é um gênio do crime, pelo contrário, e a graça é justamente observar como essas pessoas respondem a cada vez que a corda aperta um pouco mais em seus pescoços, como animais desesperados para escapar. Assim, o casal vai se afastando daquela cumplicidade inicial que os fazia uma unidade excêntrica, e a câmera passa a os retratar em lados opostos da encenação. O medo da morte que antes era tesão, passa a ser de fato assustador e é o controle que dita essa mudança, a partir do momento em que nem Regina nem Valerio conseguem controlar o próximo passo do outro, o jogo se torna arriscado para todos.
Coimbra jamais pretende alguma seriedade, mesmo quando a brutalidade vem com mais peso e as mortes se empilham a partir do momento em que Regina solta de vez qualquer domínio de suas capacidades mentais e emocionais. O exagero e a farsa propostos pelo longa causam um desconforto hilário. A desconfiança reina em todas as relações e quando ela vira regra no casamento dos protagonistas, é como observar um dominó caindo e levando tudo junto. Pensar a banalização por como Os Enforcados retrata a violência e a morte é um caminho redundante, já que é óbvio que é exatamente esse o intuito, uma briga de poderes que se faz eliminando inimigos, delatores e pessoas em posição de poder, vista por uma perspectiva que ri descontroladamente disso tudo. Há essa relação com um cinema que o Brasil produzia mais antes, sem a necessidade de se impactar ou posicionar sobre algum tema, sem se apegar a alguma moral, e que Coimbra faz da maneira mais surtada, levando o rótulo de comédia brasileira a um lugar muito mais interessante e universal do que muitos filmes recentes.
Nota da crítica:
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