Do mistério ao horror corporal, Davi Pretto trabalha um discurso imagético de sangue e corpos para abordar a violência que corre nas veias da produção de capital em terras brasileiras
Existem dois grandes pesos que transformam a experiência ao assistir o novo filme de Davi Pretto. De um lado, Continente tem uma longa introdução, em que garantir o mistério, e a atmosfera dele, parece ser mais importante do que construir algo a partir disso. Em certo ponto, parece que Pretto não irá encarar de frente o horror nem seus temas, deixando tudo passando ao fundo e a narrativa começa a inchar, se alongar, deixando apenas sugestões pelo caminho. Essa construção lenta, no entanto, leva ao outro peso que compensa imediatamente essa questão, a virada de chave que finalmente é frontal com todo o sangue, monstruosidade e crítica política se faz principalmente pelo uso das imagens. Pretto realiza um cinema de gênero que pouco vemos ultimamente, que não existe só para reforçar um tema social em seu texto, mas que o trabalha a partir de sua encenação. Para isso, há uma referência bastante gritante: Desejo e Obsessão. O filme de Claire Denis está em diversos detalhes, mas transportado para um novo objetivo. A chegada do casal que vem da França a um lugar bem remoto no sul do Brasil é filmada sempre destacando os grandes espaços vazios, a imensidão de uma terra que vem sendo devastada para a construção de todo um sistema de capital centrado em um homem. A casa grande em que o pai em coma permanece, remete aos tempos de escravidão e engenho, assim como os muitos trabalhadores, de maioria negra, que formam o vilarejo ao redor. Existe uma organização de servidão ao redor da casa que Amanda (Olívia Torres) está prestes a herdar, repleto de regras de sobrevivência que constroem um mundo de fantasia sem a necessidade de explicar ou dar grandes justificativas. Continente entrega os símbolos e as ideias em seu próprio fluxo e rompe sua construção gradual em um mar de sangue que é a própria fundação das terras desse país.
Após sua introdução que preza muito mais por uma atmosfera psicológica, Pretto abre com mais intensidade seu teor político a partir das imagens. É claro que sem esse longo caminho que não encara de frente o que tem a dizer, o filme seria completamente diferente, provavelmente até tornando sua virada menos importante, mas é tão mais interessante ver o que o diretor tem a dizer com suas cenas quando é frontal com o terror, e parece apenas lógico que um comentário político desse porte seja feito pelo horror corporal. Amanda, que chega como essa personagem meio passiva, sem fazer parte de fato do sistema que o pai construiu e é dono, vai sendo tomada por uma sede de sangue que vem lenta e sutilmente. Tudo é obscuro e vazio nas terras que limitam os ambientes do filme, como que destacando que as leis e regras de verdade não existem ali, apenas o que a casa grande dita com seus capangas. Parece impossível escapar tanto geograficamente quanto da lógica assustadora que faz todas aquelas pessoas continuarem a trabalhar na fazenda e viver nas casas ao redor. Martin (Corentin Fila) até tenta ir embora, mas para o carro antes de sair da vila. Uma vez dentro, é como se os corpos fossem amaldiçoados com a doença que o velho francês bem destacou em suas cartas como algo trazido por ele mesmo, agora deitado como um coração podre e enfraquecido de um organismo prestes a ruir. O colonizador, o europeu que chega ao Brasil para construir suas terras por cima do sangue de trabalhadores escravizados, é visto como um vampiro, um propagador de uma doença demoníaca.
Pretto usa então uma proximidade ao trabalho de 2001 de Claire Denis ao construir a sede de sangue como um desejo, aproximando muito sua câmera dos personagens em suas vontades e nas feridas sangrando, nas bocas que o consomem desesperadamente e os corpos que se encontram nessa troca. Os sons se assemelham também à mesma lógica que Denis construiu no passado, colocando esse vampirismo quase como um prazer carnal, muito destacado pelo que se escuta do lado de fora do galpão, mas imageticamente também pelo encontro da médica Helô (Ana Flavia Cavalcanti) com Martin e em como a filha do patrão suga todos. A forma como Amanda passa a se mover e como seu corpo se torna totalmente voltado para suprir a necessidade de consumir os trabalhadores que a cercam, vai muito de encontro com a corporeidade assumida pela atriz de Desejo e Obsessão, chegando a fazer referências muito diretas a cenas e figurinos marcantes. No entanto, Pretto ressignifica essa inspiração, transformando o consumo carnal apaixonado de Denis em um comentário político tanto de história do Brasil quanto da escravidão atual do agro. Amanda não herda só terras, mas também a postura de senhora da casa grande, cabe a ela continuar a sugar o sangue dos trabalhadores que desmatam e continuam a fazer a fazenda funcionar em seu nome, em troca de uma pequena compensação. Enquanto para eles é dada uma cota de sangue, Amanda tem direito de drenar todos eles e, rapidamente, sua sede foge do controle e rompe com todas as regras que o patriarca havia estabelecido para que seu domínio fosse garantido e que nunca lhe faltasse o que desejava.
Continente entra nessa espiral em que o sangue se mistura à terra, em que o patrão tem os corpos de seus escravos à disposição para tirar tudo que quer e o vício que se estabelece neles os torna vulneráveis a seguir trabalhando para conseguir o mínimo. Mas o descontrole de Amanda com o sistema estabelecido é o estopim da revolta. Para os trabalhadores hipnotizados pelo vício, não havia chance de sair dessa lógica de servidão, até que os atos da nova senhora da casa grande são vistos como selvageria. Helô até tenta muito abrir os olhos dos colegas antes, encontra em drogas alternativas a chance de os libertar desse transe opressivo, mas é só quando todos se rebelam contra Amanda que finalmente o maior símbolo de controle do vilarejo pode ser queimado. Os vampiros colonizadores e escravizadores que construíram impérios nas terras brasileiras a partir de muito sangue, existem em Continente como uma ferida aberta que não consegue cicatrizar pois segue sendo alimentada, está tudo nas imagens que Pretto conduz.
Nota da crítica:
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