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Foto do escritorRaissa Ferreira

48ª Mostra | Dormir de Olhos Abertos

Em um mundo quente e de estagnação, Nele Wohlatz observa pessoas em estado de não pertencimento encontrarem na comunicação uma boia para navegarem suas melancolias

Dormir de Olhos Abertos

A desconexão provocada pelo celular destruído no caminho de Taiwan para Recife é um excelente pontapé para uma jornada que se determina a partir da falta de pertencimento e da complexidade na comunicação. O calor desse lugar no Brasil pode ser sentido por como os personagens se arrastam nas cenas, derretidos em um não-lugar, mas, ainda assim, capazes de encontrar pessoas que falem suas línguas, ou ao menos um idioma que compreendam. Kai deixa seu lugar para visitar Recife carregando um conhecimento em espanhol que a conecta com um argentino que também fala inglês. Na busca por um alicate no centro, encontra um chinês, alguém que não só consegue se comunicar com ela, mas também a leva até uma história que de fato conversa com seu estado atual. Entre chineses que falam espanhol e argentinos falando inglês, o Brasil passa ao fundo, como cenário de não pertencimento a essas pessoas, tão desconectadas que navegam ilesas por seus costumes e cultura. O carnaval é apenas um som ao fundo com alguns figurantes que passam, as festas sempre estão fora de campo e os estrangeiros seguem derretidos pelo calor, alheios a essa veia pulsante de Recife. Para eles, a China muda sempre, se transforma e evolui, enquanto o Brasil continua sempre igual e devagar. E, de fato, suas jornadas parecem estagnadas, não pelo cenário, mas por como não se encaixam, incapazes de seguir em frente. O abandono no aeroporto que causa uma viagem solo, a empreitada de vender guarda-chuvas em um calor sem nenhuma garoa sequer, a rotina como funcionários à beira da escravidão, empilhados em quartos pequenos, com vidas restritas a poucas paredes. Nele Wohlatz mistura origens e idiomas para mostrar seres humanos que flutuam pelo mundo e encontram seus semelhantes pelo acaso ou pela estrutura social que os espreme juntos. Se locomover geograficamente está muito distante de um progresso em Dormir de Olhos Abertos, mas a comunicação com o outro que também vaga estagnada, é a chave de algum acolhimento que se sente em meio a um mundo de solidão e melancolia. 


O vermelho sempre presente nos figurinos e objetos de cena puxa algum calor para uma fotografia menos quente do que se esperaria. O clima é retratado muito mais pelos corpos dos personagens do que pelas imagens frias e distanciadas, mas há esse avermelhado que parece querer conversar com o sol, fugindo da obviedade de um jogo de cores mais azulado para transmitir o estado de espírito desses estrangeiros. Há uma alegria que não se transpõe para a narrativa, mas se vê atrelada ao Brasil, de pessoas que dançam, da música constante, dessas cores quentes que passam alheias ao que acontece com aqueles que não falam português. Nessa cidade em que a colonização é tão presente na história de diversas formas, grupos de turistas e imigrantes são facilmente identificados, e Nele Wohlatz não foca seu filme nos locais, apenas os usa como alegorias a um espírito geral desse espaço, que não consegue ser acessado, ou nem quer ser, pelos que vem de fora. As latas de cerveja se empilham no apartamento que os chineses usam como moradia, mas a farofa é criticada, assim como as contradições do jeito de falar do brasileiro, o alimento que buscam é sempre aquele que mais se parece com o que os conecta a suas origens. Eles percebem a mudança no cheiro do corpo, como se o ambiente ao redor mudasse a química de suas peles a ponto de os tornar diferentes, mas para Xiaoxin é quase impossível saber qual seria sua essência depois de se mudar e perder tantos países. 


É o relato de suas experiências que os conecta, o livro escrito em cartões-postais em espanhol, impossível para Fu Ang ler, mas facilmente codificado por Kai, como se nesse buraco que os liga através do tempo, esses personagens de origens próximas e histórias de solidão fossem atraídos como imãs uns aos outros. Se é difícil se sentir em movimento em um lugar ao qual não se pertence, encontrar alguém que fala sua língua não garante a compreensão do que se sente e de quem se é, como uma tradução em que coisas se perdem, mas é o mais próximo de uma boia que te impede de afundar completamente.


 

Nota da crítica:

3.5/5


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