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Foto do escritorRaissa Ferreira

48ª Mostra | Levados pelas Marés

Jia Zhangke opera como um historiador, reconstruindo o caminho do passado até o presente, do coletivo a uma sociedade individual, moderna e distante

Levados pelas Marés (Caught by the Tides)

Há um apanhado de imagens de duas décadas de Jia Zhangke que servem para traçar um retrato do tempo presente, mas, também, como se chegou até ele. A tela muda de aspecto, a imagem possui diversas texturas diferentes, as pessoas envelhecem e a China muda. O filme que se abre a algo mais geral, de grupos, coletivos e cidades como protagonistas, sem uma narrativa muito bem marcada, encontra em dado momento uma história mais direta a seguir, com personagens bem delimitados. Quando Guo Bin (Zhubin Li) avisa que quer tentar a vida em outro lugar, seu sumiço e falta de respostas nas mensagens de celular levam Qiao Qiao (Zhao Tao) a uma busca que atravessa cidades. Gradualmente, as cenas do passado que eram repletas de encontros sociais entre muitas pessoas e muito barulho, em uma trajetória praticamente musical que Levados pelas Marés (Caught by the Tides) propõe, vão se tornando sobre uma comunicação mais distanciada, sobre os silêncios e espaços vazios entre as pessoas. Qiao Qiao nunca diz uma palavra sequer, o que gera um espanto quando ela emite um barulho ao final do longa, um grito, mas seu rosto é perfeitamente capaz de dialogar por ela a todo instante. A mulher que se torna mais velha e mais madura conforme o filme atravessa o tempo, parece até o homem silencioso que caminha de Tsai Ming-liang, pois é sua jornada que retrata não apenas o tempo presente, mas também os espaços ao seu redor. Zhangke traça um caminho que vê as mudanças na China, a modernidade esmagando o mundo e o capitalismo transformando relações. O distanciamento imposto ao relacionamento é produto de uma busca afetada pelo estado das coisas, uma ambição econômica, e chegando na parte final do filme, o espaço que torna os ambientes silenciosos e vazios é resultado de ações coletivas, de uma resposta do tempo ao que vem sendo feito com o mundo.


Zhangke é praticamente um historiador e de todos os filmes que retratam a pandemia, seja como centro da narrativa ou elemento de contexto, Levados pelas Marés é o que compreende como a utilizar de forma mais coerente em sua proposta. Se o cineasta retrata o mundo e o tempo em que vivemos, a trajetória de uma sociedade em colapso não poderia ser captada de forma mais agridoce do que uma mulher que apenas se comunica por mensagens, usando uma máscara por conta da pandemia, tentando contato com um robô a serviço de uma grande corporação estadunidense. Nesse mesmo sentido, o longa vê a chegada de novas formas de comunicação, ele que mistura VHS, digital e tudo que foi feito nos últimos 20 anos, encontra o celular que filma para uma rede social. Interessante como Zhangke capta a feitura de uma peça para o TikTok, não apenas a apresentando a um homem que desconhece essa tecnologia, como que rindo de sua existência curiosa, mas também trabalhando um panorama externo que expõe a simplicidade de se criar com um aparelho pessoal um vídeo para uma rede social de conteúdo em massa, resultando também em algo bastante simples. Entre isso e anúncios de robôs que podem substituir familiares e amigos, lojas de grife, cidades sendo engolidas pela água e uma ironia à forma como os Estados Unidos lidaram com a covid, Qiao Qiao caminha em busca de um homem que não responde suas mensagens, nada mais próximo da presente situação dos relacionamentos modernos. 


O capital é sempre muito destacado nas cenas em que trocas de dinheiro captam imagens muito próximas das cédulas nas mãos. O mesmo acontece com os celulares, o dispositivo que facilita a comunicação de Qiao Qiao quando apenas sua expressão facial não basta - nas tentativas de conversas com Guo Bin - e outros objetos que apontam esse trabalho de registro histórico. Assim, é curioso como as máscaras são utilizadas em Levados pelas Marés, porque, por vezes, é como se os personagens as removessem como uma angústia de ainda serem reconhecidos, tentando conferir em espelhos se ainda possuem rosto, ou esperando o retorno visual de alguém que as enxergue. 


Entre as imagens de um passado bastante povoado pelo contato humano e as músicas que os faziam dançar e cantar juntos, e a banda que toca para poucas pessoas desanimadas, há também o efeito dessa esmagadora sensação de invisibilidade que se dá na modernidade. Qiao Qiao precisa abaixar sua máscara para que o robô veja seu rosto e nele, encontrar tristeza. O rosto da atriz, na verdade, nos diz muitas coisas, sendo desnecessário quase sempre algum texto que a acompanhe. Do sorriso artificial para espantar, às expressões que formam toda uma conversa sobre as marmitas que comprou, Levados pelas Marés se concentra nessa mulher, individualizando uma narrativa que antes era sobre todo um panorama social, esse trabalho passa a ser projetado em sua jornada pessoal, brilhantemente carregado por seu silêncio muito expressivo e uma encenação que existe para que ela se molde ao caminhos ditados pela obra. O mundo existe, robôs, homens ameaçadores, barcos e caminhos destruídos, e Qiao Qiao reage a tudo isso, culminando no registro de Zhangke sobre o tempo.


 

Nota da crítica:

4/5


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