Entre desejos reprimidos e um suspense extremamente cômico, Alain Guiraudie discute uma masculinidade que responde às emoções de forma violenta e bizarra
A chegada de Jérémie (Félix Kysyl) a uma pequena cidade com pouquíssimas pessoas é o ponto de partida de Misericórdia (Miséricorde), o que significa que não é apresentado a quem assiste nada sobre seu passado, nem mesmo por instantes antes de seu carro adentrar as ruas deste local. Suas motivações, seu caráter, relacionamentos ou atividades profissionais são deixados do lado de fora e quase nunca mencionados durante a duração do filme, este é um dos pontos similares com Teorema, obra de Pasolini que será muito lembrada pelo trabalho de Alain Guiraudie mas com uma roupagem cômica ainda mais absurda. Isso porque Misericórdia usa a mentira como sua estrutura básica, desenhando um mistério de crime que é, na verdade, uma sucessão atrapalhada de atitudes extremamente peculiares. Jérémie vem como um objeto que desperta desejos complicadíssimos de serem lidados pelas pessoas que habitam o vilarejo, principalmente pelos homens, mas é seu próprio que o leva até lá, como vai sendo percebido por seu interesse nas fotografias do padeiro falecido e pelo diálogo com sua viúva (Catherine Frot). Nos primeiros momentos, a tensão entre o homem que chega com o amigo de infância Vincent (Jean-Baptiste Durand) dá sinais de uma atração sexual mal resolvida que poderá desencadear acontecimentos mais obscuros. Isso, de fato, acontece, mas o humor é o condutor, removendo um tanto da seriedade de um suspense mais tradicional. Guiraudie ri então desses homens e suas limitações, transformando os tesões incompreendidos em pancadaria infantilizada e em uma obsessão partilhada por diversos personagens que alternam a posse de Jérémie como que levando uma criança pelas mãos até em casa. Não apenas trabalhando uma masculinidade frágil em relação ao afeto partilhado entre homens, também vê no padre as questões de amor e sexualidade em relação a sua fé e vocação e na mulher solitária a possibilidade de preencher um vazio familiar, de filho e marido, com o estranho conhecido. Tanto Teorema quanto a obra de Dostoiévski conversam aqui, do desejo que transforma dinâmicas antes estagnadas e a culpa por um crime cometido que consome o personagem principal, em uma mistura de suspense, comédia, religião e tesão.
Dado o tom estabelecido nas muitas investidas de Vincent, visitando o quarto do amigo toda madrugada e seu ciúmes com a proximidade de Jérémie e Walter (David Ayala), pode-se dizer que é surpreende quando a violência um tanto cômica sempre trocada entre os dois, similar a duas crianças brigando na escola, cruza uma linha mais brutal. O protagonista de Misericórdia não parece exatamente um assassino frio e calculista, mesmo que seu passado e quase tudo sobre ele seja ocultado, então há esse rompimento que é fundamental para a narrativa e também definidor sobre o psicológico deste homem desconhecido. Mesmo antes do crime, é peculiar como Jérémie vai prolongando sua estadia. Teria ele feito algo de errado também em sua casa? O término com a namorada é real ou uma história inventada? Ao que parece, o protagonista não tem mais nada a perder de onde veio e sua viagem não é apenas uma forma de se aproximar de alguém por quem foi apaixonado, usando suas roupas e ficando em sua casa, perto de seus objetos e fotos, mas também uma fuga de uma vida fracassada. Impossível dizer ou remontar qualquer coisa com certeza, pois conforme a trama avança, cada vez menos importa pensar quem era esse homem e sim o que será dele daqui pra frente, a cada pequena reviravolta.
As relações masculinas cheias de tesão entalado se tornam motivo de riso com uma sofisticação de Guiraudie que entre as brigas infantis, as visitas nas madrugadas ou até mesmo um pênis ereto, tudo é incrivelmente absurdo, constrangedor e engraçado, mas de ótimo gosto. Os ingredientes poderiam ser combinados para um besteirol de má qualidade com facilidade, mas Misericórdia dosa seu humor em uma mise-en-scène tão elegante quanto a de Pasolini. A sucessão de mentiras vai se tornando tão bizarra que pode-se esperar qualquer coisa e os personagens respondem a isso quase sempre de maneira muito serena. Jérémie, que é culpado, acaba virando uma marionete nas mãos dessas pessoas cheias de vontade por ele, prontas para ignorar suas atitudes complicadas só para poderem o observar, conversarem com ele ou deitarem juntos na cama. Mais curioso ainda é ver sua reação a tudo isso, o homem apenas se deixa levar, embora algumas vezes perplexo com as esquisitices da cidade, mas comprando cada atração, mesmo as que não é capaz de retribuir. O título deste filme bem poderia ser a interjeição como usamos em português, pois a cada cena a pessoa espectadora é surpreendida com algo ainda mais peculiar, de riso de desespero e vergonha, por como Guiraudie retrata seus personagens entre a tensão e o tesão.
Nota da crítica:
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