Em seu documentário vencedor do Leão de Ouro em Veneza, Laura Poitras usa o olhar e o trabalho da fotógrafa Nan Goldin para contar histórias muito maiores que a dela
Uma luta contra uma família bilionária, um trauma familiar, um vício e uma carreira reconhecida mundialmente são alguns dos temas que Laura Poitras retrata em seu filme através das fotos e da história de vida de Nan Goldin. Ainda que sejam muitas histórias para se contar, servem para contar outras tantas, de uma geração de artistas e seus núcleos em Nova York, de uma sexualidade que começava a querer se libertar, de traumas familiares e de uma guerra contra o sistema norte americano.
Mesmo que à primeira vista pareça que a luta de Nan e seus amigos ativistas seja contra uma família bilionária, na verdade todas suas lutas, em toda sua vida, foram contra seu próprio país. O sistema de saúde praticamente inexistente, o berço do capitalismo que permite que empresas bilionárias controlem a liberação e o consumo de medicamentos de toda uma população, o abandono de pessoas doentes em meio ao surgimento de uma nova doença mortal e uma onda de vícios e overdoses, ainda que Nan veja sua batalha apenas contra uma família, o buraco é bem mais fundo. Mas é através de suas experiências que o documentário caminha e é assim que ele mostra as realidades de todas as pessoas afetadas pelas mesmas adversidades que a fotógrafa e seus amigos.
Andando por todos esses temas delicados, o filme revela que em todos os momentos a grande arma de Nan para sobreviver foi a arte. Para refletir sobre a relação complicada com seus pais e a perda da irmã, foram as fotos que viraram apresentações e um livro. Para lidar com a agressão de um namorado foram novamente suas fotografias que a seguraram e levaram para outras mulheres essa superação. Em sua briga com a família Sackler, é a arte novamente que a leva a pequenas vitórias, através de sua influência artística com os museus e suas performances em protestos, é sempre essa a arma que Nan usa para lutar - internamente ou externamente - e que acaba sendo armamento também para outras pessoas. Da mesma forma, o documentário de Poitras se torna outra arma artística da fotógrafa, para divulgar suas batalhas contra seu país e dentro dela mesma.
O trabalho de Nan de registrar o cotidiano, sua vida, seus amigos, os lugares onde trabalhou, os amantes que teve e tudo que a cercou, retrata muito mais que sua trajetória, mas também toda a história de um recorte de uma geração, em ebulição artística e em descoberta de identidades e sexualidades. Apesar de ser um documentário que não inova em sua forma, tem muita força por colocar no centro esse olhar de Nan, suas fotos, sua arte, e sua narrativa dos fatos, que carregam uma sensibilidade única. Assim, Poitras se torna mais um meio para contar tudo pelos olhos e voz dessa mulher que influenciou tanto o trabalho de tantos artistas, inclusive da própria diretora.
A briga judicial até pode soar como o principal foco dessa narrativa, mas é a relação de Nan com a irmã e seus pais que carrega a maior emoção do filme, se revelando uma das maiores dores de sua vida e também, sua maior motivação. Para viver com esses traumas ela cria arte, para recontar suas memórias e para ter coragem de seguir em frente, é sempre a arte. Fotografias que se tornam outras obras, que inspiram pessoas em todo o mundo, que se tornam força para aqueles que entram em contato com seu trabalho e que, agora, se tornam o filme de outra pessoa para atingir outras tantas.
Com muitos temas, All the Beauty and the Bloodshed não se perde justamente por se ater ao fio que une tudo isso: Nan Goldin, se mantendo humano, fácil de se relacionar, emocionante e inspirador.
Nota da crítica:
4/5
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