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Foto do escritorRaissa Ferreira

Assassinos da Lua das Flores (2023)

Scorsese faz de seu filme uma poderosa denúncia que se importa em retratar de forma justa os lados da história, retirando o drama da equação para provocar revolta



Se o petróleo é provavelmente a maior paixão dos estadunidenses, o cinema certamente é a de Scorsese. O diretor que realmente demonstra seu amor pelo que faz, e pelo que a sétima arte representa, consegue deixar em cada plano de Assassinos da Lua das Flores seu apreço pelo cinema e seu domínio na direção. Para contar a história de tudo que aconteceu com os Osage, da descoberta do ouro preto em seu território aos assassinatos que devastaram esse povo, Scorsese faz questão de mostrar essas pessoas e sua cultura com bastante respeito. Não à toa a cena que abre o longa já exibe um objeto sendo elevado como algo importante e poderoso, enquanto ouvimos a língua nativa deles, não o inglês, e toda estética trabalha para valorizar aqueles elementos. O que segue são muitos momentos em que os rostos indígenas são colocados em foco, suas roupas, seus costumes, sua cultura é lida em voz alta narrando acontecimentos, sua língua é falada quase sempre sem o apoio das legendas e até os homens brancos mais importantes nessa narrativa são obrigados a aprenderem o idioma para se comunicarem aqui. Não há pretensão de Scorsese em se colocar num lugar de salvador ou de detentor dessa história para poder realizar seu filme, ele compreende seu papel e transmite com bastante humildade sua mensagem, se preocupando a todo momento em encontrar formas justas de retratar os Osage. Assim, aquela ambiguidade costumeira de seus filmes que colocam homens terríveis como protagonistas bastante gostáveis não existe aqui, vilões são vilões que causam revolta, e não existe uma dramatização que busca a pena do público com essa nação, a intenção é denunciar e direcionar corretamente a empatia, mantendo a honra e dignidade dos Osage.


Existe uma mudança de tom no filme que pode ser sentida em duas metades. A primeira parte se dedica a acompanhar a devastação dos Osage pelos assassinatos sistemáticos, passando por tudo de ruim que o homem branco levou para aquelas terras, vícios, drogas, doenças e ganância. A tensão é quem domina a narrativa nesse momento, bem pontuada pela trilha sonora. A cada cena sabemos que é uma questão de tempo até mais alguém morrer, assim como Mollie (Lily Gladstone) começa a compreender que eles possuem um alvo nas costas e sua paranoia cresce. Para as mortes, Scorsese busca o afastamento dramático, jamais se aproximando da violência em busca de provocar emoções, são sempre cenas secas que acompanham a importância que os algozes dão às suas vítimas, mas também seguem a proposta de que não devemos sentir pena dessas pessoas, e sim revolta pelo que aconteceu. Ao longo desse processo o filme trabalha a complexidade das relações entre Ernest (Leonardo DiCaprio), seu tio (Robert De Niro) e sua esposa. O manipulador King Hale é sempre uma sombra no longa, que atua sorrateiramente, sempre o cabeça de todos os planos, quem se beneficia de tudo de pior que acontece, mas que nunca aparece sujando as mãos. Esse personagem terrível que se esconde numa máscara de bondade, encontra o idiota perfeito para ser usado em Ernest, que segue facilmente os comandos do tio, mesmo quando não concorda com ele. Da mesma forma, a relação entre ele e Mollie deixa claro um sentimento genuíno, pela forma como Scorsese filma seus corpos se tocando e seus olhares, mas também há a ignorância desse homem que o leva a atitudes perversas contra sua esposa e toda sua família.



Se seria possível sentirmos alguma empatia por Ernest, por ser o mais possível protagonista nessa narrativa e ser um homem fraco e facilmente manipulável, Scorsese faz questão de mostrar a vergonha de seus atos, mantendo a câmera estática em seu rosto enquanto confessa seus crimes e mentiras. Há o amor, a confiança de Mollie nele, o carinho verdadeiro trocado, mas isso nunca é usado como forma de absolver o personagem. A mudança de tom vem justamente quando as investigações começam e a deterioração gradual de Mollie, que aumenta o tom de urgência da narrativa a carregando para um ponto que parece sem retorno para os Osage, toma uma virada para a melhora. Lily Gladstone é a luz desse filme, uma potência de tranquilidade e sabedoria que opera sua atuação nos silêncios de seus olhares e expressões faciais. Essa mulher, uma força da natureza, vai sendo destruída aos poucos, mas nunca é retratada como fraca, e é sua mudança de estado que acompanha a virada para o filme mais policial, devolvendo alguma esperança para o destino de seu povo na agilidade do cerco de investigações. Embora passem anos, o longa flui pelo tempo de forma dinâmica, focando na gravidade da situação pelo estado físico de Mollie, mais do que se importar em datar as passagens.



Nunca escondendo do espectador quem são os assassinos, Scorsese trabalha os jogos de poder desses homens brancos, e em uma das cenas, em que De Niro pune a palmadas DiCaprio, há uma mise-en-scène que remete a outro longa sobre petróleo, Sangue Negro (Paul Thomas Anderson, 2007). A lógica é parecida, da manipulação e perversidade desses homens gananciosos que não se importam com quem precisam eliminar para ganhar mais dinheiro, porém outro ponto que Assassinos da Lua das Flores se importa muito em mostrar é o preconceito racial desses homens, que realmente enxergam os Osage como seres inferiores a eles, o que os dá a confiança da impunidade. “É mais fácil um homem ser condenado por atirar num cachorro do que por matar um índio” é dito em certo ponto, mas a certeza de King Hale de que aquelas mortes não importam, de que aquelas pessoas não valem nada para ninguém é tão grande que seu personagem sustenta até o fim um cinismo absurdo, numa grande atuação de De Niro que de começo ainda confunde até o espectador nessa manipulação tão sorrateira. A presença dos primórdios do FBI se dá sem tanta importância, evidenciando a demora das autoridades a darem a devida atenção aos Osage. É sempre aquele sentimento de revolta e injustiça que Scorsese busca e consegue magistralmente aplicar em cada cena.


É comum que filmes baseados em fatos reais como este se apoiem em textos para finalizarem suas histórias, dada a extensão dos acontecimentos e a dificuldade de as aplicar dentro dos longas, mas o diretor encontra uma solução brilhante aqui. É emocionante ver a construção dos momentos finais que narram o desenrolar dos acontecimentos após os julgamentos, além do desfecho de cada personagem aqui retratado, ao abrir dizendo que essa foi a história verdadeira dos acontecimentos daquela nação, mostrando um palco de pessoas brancas falando para uma plateia de pessoas brancas que aplaudem extasiadas os “crimes reais” contados, Scorsese se coloca no único lugar que poderia estar aqui, mas também mostra o quanto respeita e se importa com tudo que acabou de contar. A solução criativa de ambientação e encenação demonstra como o diretor ainda busca se desafiar e encontrar novos caminhos nessa arte pela qual é apaixonado, e como também a domina. Sua aparição é um momento de pura emoção para qualquer cinéfilo, essa figura tão importante se imortaliza em tela, mostrando que ainda há muito o que ele explorar narrativamente, que jamais parará de buscar novas formas de criar. Sem se colocar como mais importante, estabelece seu devido papel nisso tudo e exalta a quem pertence aquela história, reforçando a revolta com a impunidade e uma reflexão sobre os genocídios com indígenas em todos os lugares. O plano aberto final, belíssimo, eleva os Osage cinematograficamente, entrega o céu a eles, para quem sempre pertenceu.


 

Nota da crítica:

4,5/5



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