Em uma viagem digital de 20 anos, Victoria Mapplebeck reflete sobre seus muitos momentos presentes enquanto o centro de sua narrativa se torna tão mutável quanto a própria vida
Quando Jim nasce é 2004 e o mundo ainda começava a entender a era digital, mas Victoria já sentia a necessidade de voltar a fazer filmes e capturava todos os seus momentos com uma câmera de vídeo. Ao longo dos anos suas filmagens se adequam ao momento até se tornarem o que hoje conhecemos tão bem e assistimos a todo instante nas redes sociais, os iphones tomam conta mas a linguagem de Motherboard conversa tanto com os anos 2000 que nenhuma imagem parece antiga demais, nenhuma resolução causa um grande contraste, Victoria se apropria da estética de cada breve época, e suas tendência, para construir um filme que fala com o tempo que passa e se altera de acordo com a vida. Enquanto conta sobre sua gravidez e o abandono do que nem chegou a ser um parceiro, é como se todo seu filme fosse sobre aquilo, o pequeno Jim capturado nos momentos mais doces de sua infância parece ser a única versão que existe, até que os anos mudem e suas inserções, do vídeo digital acelerado até efeitos adicionados em tela, produzam um menino cada vez maior e mais velho e, novamente, é como se apenas aquele momento fosse central. Impressionantemente, Motherboard se passa ao longo de 20 anos mas é realmente um filme sobre o presente, esteja ele onde estiver na linha do tempo. Cada imagem capturada e retratada por Victoria se torna central em seu documentário e tudo que importa é o que se tem naquele momento. Daí a importância de não apenas ter filmado tudo ela mesma como também montado, colocando suas intenções pessoalmente e intimamente em cada cena.
Observar o pequeno Jim, que nasce e cresce com a câmera digital ou os celulares o filmando, não é assistir a uma criança pelas lentes puramente da nostalgia e da saudade. Victoria não carrega seu longa com esse apego ao passado nem uma ansiedade pelo futuro, filma seu pequeno filho como ele é e divide com o espectador aquele instante como realmente é, único. Da mesma forma o faz quando descobre seu câncer, nas muitas tentativas de contato com o homem que a engravidou, quando seu filho se torna um adolescente com problemas e até mesmo quando coloca imagens de seu próprio passado familiar, quando Victoria conta sua história não o faz tentando desvendar velhos tempos, mas construindo sempre um diálogo com o presente. As imagens são o que são hoje, tudo que a obra conta para trabalhar é o agora e é impossível voltar no tempo. Talvez seja engraçado dizer isso, mas não é nada incomum cineastas realizarem grandes resgates de suas vidas com filmagens próprias que são cartas saudosas a um passado que gostariam de revisitar nem que seja para fazer as pazes com seus traumas, e essa não parece ser a vontade de Victoria. A verdadeira essência de Motherboard mora também no desejo de fazer cinema e o realizar como se pode. É como se essa mulher, que precisou abandonar seu emprego como diretora na televisão para sustentar o filho, tivesse passado todos esses 20 anos tentando fazer filmes, gravando tudo como podia, resultando nesse formato puramente digital de pequenas câmeras e celulares.
A cineasta que observa a si mesma, se expõe e faz de seu filme um diálogo que muito provavelmente, durante seu processo, não sabia se um dia encontraria remetentes, encontra sua maior força na forma em que lapida todo seu material. A diretora divide com o espectador não apenas seus momentos mais íntimos e pessoais, mas também esse próprio processo cinematográfico que envolve as partes menos compartilhadas, a busca por financiamento, as idas a festivais e muitas tentativas de transformar visões em projetos concretos. São esses momentos que costuram sua vida em uma narrativa que às vezes é sobre ser mãe solo, depois sobre um tumor, e então sobre seu filho adolescente buscar contato com o pai e por aí muitas outras questões tomam o centro. A cada tempo que se passa em tela algo novo se torna mais relevante, como quando a tão aguardada resposta do genitor ausente se torna irrelevante para que mãe e filho se concentrem na luta contra o câncer. Victoria, mas também Jim, abraçam cada instante do presente, cada etapa da vida como é, ou como foi, compreendendo que seu filme é como a vida realmente é, instável, variável e impossível de se controlar. O resultado é íntimo mas também muito honesto, como assistir a uma história que não nos pertence nem um pouco, mas de muitas formas conversa com a nossa própria.
Filme assistido a convite de tpr media consultants
Esse texto faz parte da cobertura da CPH:DOX Copenhagen International Documentary Film Festival 2024
Nota da crítica:
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