Pessoas se tornam diretoras e objetos, controlando suas imagens e como desejam se expor, para adentrar as muitas camadas do que a sexualidade pode revelar
Assistindo a Eros me dei conta de que talvez a experiência de ir ao Motel como vemos aqui seja algo bastante Brasileiro. Estamos tão acostumados a ver os tantos estabelecimentos pelas ruas, ou até de os frequentar, que esse pensamento me escapou até ser confrontada com o exercício que o filme propõe. Quando se pensa nessa proposta de pessoas filmarem seus momentos em motéis, talvez o primeiro palpite do resultado seja puramente sexual, mas Eros consiste em muito mais do que isso, das interações humanas que acontecem nesse espaço arquitetado para encontros eróticos, atravessando questões morais, emocionais, de fé e de fetiches. No entanto, sua grande força mora no fato de que todos se tornam diretores, cada personagem com seu próprio dispositivo controla a trilha sonora, o enquadramento, a qualidade da gravação, sua abordagem, enfim, toda a forma e narrativa é blocada e se altera conforme os objetos mudam. Aqui, as pessoas controlam suas imagens e como querem ser vistas, provocando diferentes objetivos e revelando suas próprias vontades de se mostrarem como seres desejáveis e sexuais. O poder de manusear a câmera os entrega a possibilidade de não apenas colocar em pauta as questões que lhe forem mais relevantes mas, principalmente, de dirigir como o mundo os verá. Em um dos recortes, a profissional do sexo Barbara declara pensar que o motel é um lugar para garotas de programa e usuários de drogas, mas o que o documentário revela é o exato oposto, que esse é um lugar de muitas coisas, em que os muitos cubículos fechados contém universos particulares escondidos, abertos pela ideia de Rachel Daisy Ellis para uma investigação que se dá pelo sexo, mas o vê de forma tão natural quanto dividir um prato feito depois do gozo.
A união dessas muitas histórias resulta também em conteúdos mais explícitos, alguns recortes até são mais breves e mais focados no ato sexual em si, mas a grande maioria é um contorno muito maior de uma experiência bastante particular e que ainda assim parece similar em muitos aspectos. O motel se mostra um refúgio para muitos, de exercer seus desejos, de fugir um pouco da realidade, dos filhos, dos julgamentos, um lugar para aproveitar os aparatos certos que os fetiches necessitam, um momento romântico entre apaixonados ou até mesmo a desculpa para jantar, aproveitar uma banheira de hidro e também transar. Parece quase uma unanimidade entre esses objetos de observação o momento da refeição e do relaxamento, revelando que esses quartos são muito mais que meras camas feitas para um sexo impessoal. Como cada um que comanda suas filmagens é diretor por algumas cenas, a abordagem se adapta a suas visões, o casal crente aproveita o espaço para falar de sua própria experiência e só mostra o que se sente confortável para exibir, enquanto outros transbordam seus desejos em tela, revelando algumas vaidades e o anseio por ser assistido, mas também há aqueles que dividem emoções, desabafos, questões reprimidas ou até as que já estão bem resolvidas. O compilado de Rachel une muitas sexualidades, formas de amar e ser, costurando fetiches e crenças em um filme que deixa os julgamentos na rua, no mesmo lugar em que o espectador precisa deixar os seus para entrar nesses quartos.
As trilhas sonoras são muitas, do sertanejo e funk à música romântica, as televisões exibem de filmes pornô até programas de comédia, muitos casais buscam mostrar seus quartos partilhando cada detalhe de seu funcionamento e escolhem quais camadas de suas interações serão colocadas na gravação. O simples ato de posicionar a câmera do celular em um canto, como uma peça voyeurística, ou de se colocar claramente frente a ela para conversar com quem assiste, são controles narrativos que essas pessoas exercem naturalmente, talvez nem se dando conta de como suas escolhas constroem pequenos filmes que dizem muitos sobre elas mesmas. Existem momentos mais emocionantes, como os de Fernanda, dividido em cenas de um relato muito sensível sobre toda sua experiência de ser travesti e encontrar o amor e outras que colocam o espectador como um observador escondido assistindo a intimidade desse casal que transborda paixão. Em quase todas as filmagens existe uma troca muito pessoal e provavelmente isso só não ocorre quando a observação se volta somente para o sexo, na relação que usa uma fantasia religiosa entre três pessoas, e são nessas diferentes abordagens que moram justamente a grande questão de Eros. Entrar em cada pequeno mundo é um deleite fascinante de se assistir, em que o prazer tem um papel essencial, mas, no fim, o controle e poder do desejo contido nessas imagens é de cada um que opera as câmeras de seus celulares, nós somos apenas convidados passivos.
Esse texto faz parte da cobertura da CPH:DOX Copenhagen International Documentary Film Festival 2024
Nota da crítica:
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