A direção da tia-cineasta Atiye Zare Arandi serve como um incentivo para que a pequena Melina dê sua própria visão ao filme, escancarando as negligências que sofre
Entre as filmagens em que a menina posiciona a câmera e fala diretamente como um diário em vídeo, e as cenas em que quase não é possível perceber a presença de outra pessoa controlando os registros, Grand Me soa quase sempre como um filme feito pela própria Melina. Quando a câmera se move e a presença do dispositivo, e mais do que isso, de um operador e observador é revelado, a questão que parece surgir é de onde vem este olhar. É claro que ao ler a sinopse isso é facilmente explicado, mas puramente assistindo ao filme, a tia e diretora Atiye Zare Arandi só é descrita nos créditos iniciais, discretamente, e depois ao final quando a mãe de Melina reconhece sua existência e os textos na tela informam sua posição. Ao longo dos minutos que acompanham essa janela da vida da menina, Atiye permanece quase camuflada, mesmo quando está presente e não é apenas uma câmera posicionada, os outros parentes não a notam, sua presença passa despercebida e isso garante que Melina seja um pouco mais a condutora da obra. A princípio o objetivo do documentário parece rondar o possível processo judicial da criança para decidir com quem ficará sua guarda, costurando essa ideia a um filme que passa na televisão e é citado em outros momentos. Ocorre porém que essa escolha legal é um pretexto raso de uma história mais profunda emocionalmente, sobre o abandono que Melina vive de ambos os lados. Entrar nesse mundo da menina é como compreender seu comportamento aos poucos, enquanto a verdade sobre seus cuidados se desenrola, no começo Melina é uma criança mimada e geniosa, mas a rejeição que sofre se revela a verdadeira vilã que transforma suas atitudes.
É uma observação muito íntima, dentro do seio familiar, e o papel da tia impede que haja uma exploração desnecessária do que se passa. Melina filma seus pensamentos e quando não sente vontade de partilhar, fica em silêncio, não há um sentimento de que limites estão sendo cruzados para que o propósito do filme seja alcançado. É por meio dessa troca que dá espaço para a menina dar sua visão que o centro se torna muito mais sobre seu abandono, do que sobre um processo. Embora Melina peça algumas vezes para chamar um advogado ou dar sequência ao pedido de guarda, a ausência de sua mãe fortalece na menina a ideia de que não há o que escolher. Os confrontos com a mãe aumentam enquanto ela fica mais velha e suas respostas se tornam mais afiadas. O espectador tem a chance de conhecer Melina de forma bastante próxima à sua personalidade forte, da cerimônia religiosa que se assemelha a uma lavagem cerebral para o uso do véu, em que ela revira os olhos e se porta de maneira impaciente, até as cenas no carro em que bate de frente com a mãe sem medo de dizer a verdade. O que muitas vezes soa como uma carência afetiva extrema da criança, ou como birras para chamar atenção, vão se desenrolando nesse grande vazio que seus pais ocupam. É claro que Melina tem atitudes fortes e muitas vezes, demanda bastante dos adultos que a cercam, porque essa criança não foi apenas abandonada por um, mas pelos dois que deveriam ser responsáveis por ela.
O pai só aparece pela voz no celular e quando finalmente a busca para passar um tempo, deixa os avós preocupados ao demorar no retorno, até que Melina retorna bastante estremecida emocionalmente. A mãe que liga muitas vezes e visita poucas tem uma ligação complexa com a filha, sempre bastante abordada quando Melina não consegue estabelecer uma comunicação com ela pelo telefone ou pelos abraços em que a mãe parece quase sempre indiferente ou irritada. O carinho que as lentes conseguem capturar vem dos avós, que cuidam da criança como se fosse filha deles, enquanto os pais se mostram apenas dois adultos brincando de cabo de guerra para ver quem vai se livrar desse fardo. É bastante triste, principalmente porque a própria Melina vai se dando conta de tudo enquanto o filme toma forma e seus depoimentos se tornam mais sérios e objetivos. A menina entende seu abandono e da mesma forma que a tia se camufla enquanto diretora para não explorar sua dor de forma cinematográfica, é como se todos tentassem a proteger da mesma forma para que ela só chegue a suas conclusões por si mesma. A abordagem da diretora é o reflexo da vida de Melina, sozinha para comandar sua existência, com apoio de familiares camuflados nos cantos para garantir sua sobrevivência.
Filme assistido a convite da Noise Film & TV
Esse texto faz parte da cobertura da CPH:DOX Copenhagen International Documentary Film Festival 2024
Nota da crítica:
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