Diretor e protagonista forçam uma reflexão ética sobre o direito de se contar uma história, enquanto ultrapassam limites e exploram seus personagens
Mesmo no documentário, o cinema conta mentiras para o público, cabe aos seus autores torná-las atrativas ou até críveis dentro de seus métodos de trabalho. A escolha de Håvard Bustnes é usar Lars como protagonista e peça-chave para contar a história que o próprio escritor Dinamarquês sempre quis contar, mas desde o início, as intenções do filme começam a se mostrar além do que parece ser. O uso do western para ilustrar um fascínio juvenil do homem com os Apache já denota a discussão sobre o controle do olhar na arte, os homens brancos estadunidenses que pintavam povos indígenas como vilões, mas que de alguma forma despertaram sentimentos mais complexos em Lars. O explorador Helge Ingstad, Norueguês, investigando e escrevendo sobre os Apache de seu lugar tão distante se merge com a figura de Lars no mesmo papel em Phantoms of the Sierra Madre, e para isso, o filme o constrói como um personagem realmente, caricato, excêntrico e cheio de cenas que soam bastante programadas. Por algumas muitas sequências é possível confundir quem é o verdadeiro diretor aqui, o comando de Lars parece ser a única visão vigente, sua obsessão por encontrar essa tribo escondida e entender o que aconteceu na expedição de Ingstad, seu ídolo da vida, o leva a atitudes bastante desconfortáveis que desafiam os limites da ética. O problema é que tudo isso não consegue se disfarçar na narrativa, o plano dos homens brancos de criar um argumento sobre quem deve, ou pode, contar certas histórias, é transparente, mesmo quando soterrado em artifícios para soar legítimo, como algo que ocorreu naturalmente no processo. Seu trabalho de contar mentiras de forma atraente se perde em suas próprias vaidades e resulta em um amontado constrangedor que culmina sim em muitas reflexões acerca do tema, mas sempre caindo no lugar comum.
Embora o filme tenha levado muitos anos para ser finalizado, Phantoms of the Sierra Madre é lançado no festival de Copenhague logo após muitas discussões na internet sobre Assassinos da Lua das Flores e se Scorsese teria direito ou não de contar a história dos Osage por seu ponto de vista de homem branco. É curioso que os dois filmes existam tão próximos com questões que se conversam, mas enquanto Scorsese compreende e assume seu papel, se colocando em seu lugar para contar uma história que não lhe pertence, Lars, o narrador e porta-voz do documentário de Håvard Bustnes, se sente no direito de contar qualquer coisa e vivência por qualquer perspectiva e esse não é, na verdade, o problema aqui, a real problemática que se cria é a história que realmente se quer contar, não a intencional, fabricada, mas a que ocorre diante do espectador e por trás da maquiagem. A ideia inicial de recriar a expedição de seu herói historiador se perde em um intuito egoísta de encontrar um povo que está escondido e não quer ser revelado, as muitas negativas no caminho não o fazem desistir, revelando aos poucos que toda narrativa do documentário existe para forçar esses embates éticos. Cenas arranjadas e diversos momentos de reflexão de Lars colocam a pauta que o filme parece tentar vender quase contrabandeada como uma consequência natural e casual do longa: o homem branco tem direito de contar a história de um povo índigena? A resposta para tudo isso vai se desenrolar com um protagonista afetado e obstinado que usa de apoio um descendente Apache, Pius, como seu Sancho Pança para no fim dizer que deve se retirar pois essa não é sua história.
Ocorre porém, que ser ou não sua história para contar, é um problema criado e construído para ser central, para ser uma escolha bastante desrespeitosa, enquanto o ponto de vista por si só não seria um problema. Fosse uma sátira ou ironia com a questão, estaria melhor pautada, mas a seriedade que se emprega em muitos momentos quebra totalmente essa perspectiva, tornando tudo bastante tolo. Escolher o que contar, e como, faz parte da ética e de acordo com o que o próprio Lars diz no começo do longa, é comum ao ofício de escritor pegar emprestadas vivências de outros, mas o que os dois homens europeus fazem aqui não é contar uma história estrangeira, e sim se enfiar nela para criar situações problemáticas, uma após a outra, para bater numa tecla que praticamente não existe nessa abordagem. Entre dar atenção a mulheres que querem se apropriar das origens Apache, irritando e desrespeitando Pius e sua família, e ignorar todos os sinais de que não deve seguir em frente buscando a tribo escondida, Lars e o diretor usam seu coadjuvante - que parece estar ali apenas para administrar a situação como verdadeiro dono da narrativa no mundo real - de forma bastante problemática e forçam uma jornada egoísta que não tem outro propósito a não ser colocar esses homens brancos como vilões egocêntricos que precisam entender seu lugar, para dar espaço, em um final de segundos, para Pius “se tornar protagonista”. É tudo tão mequetrefe que empobrece um debate não apenas bastante atual quanto já muito desgastado por visões rasas.
Pelas muitas brigas encenadas entre diretor e protagonista e todo caminho que se traça aqui, existe uma impressão de que a qualquer momento o filme se revelará como um exercício falso, uma representação arquitetada para provocar e questionar, mas infelizmente os momentos se dão como reais e toda intenção se mostra como algo que só pode ter sido largamente planejado para fracassar e assim, dar sua mea culpa em uma redenção final que reconhece a quem pertence essa história. Mas a quem pertence é o de menos, é o que o filme demonstra querer fazer - encontrar e expor um povo que se escondeu e não quer ser achado - que torna sua narrativa uma questão ética, principalmente enquanto documentário. Sua proposta forçada então, soa falsa, não consegue se vender a mentira reflexiva e ainda deixa mais capenga do que já é, uma argumentação sobre cinema que carece mais atenção e melhores locutores. O homem branco é de fato o vilão aqui, por se enxergar nesse lugar de tanta importância que precisa dizer ao mundo - quase em tom de alerta - que sabe o que não pode fazer, enquanto faz, para pedir desculpas no desfecho.
Filme assistido a convite de Neumann Strategy & Communication
Esse texto faz parte da cobertura da CPH:DOX Copenhagen International Documentary Film Festival 2024
Nota da crítica:
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