Com 20 anos de distância entre as observações, Marcos Pimentel transforma seu filme em um exercício que lida com a dinâmica mutável da vida real
A tela de 2002 aperta as crianças em uma razão de aspecto menor, nos primeiros minutos talvez a diferença entre elas seja mais sutil, mas logo os cenários que as cercam dão conta de criar um abismo que as separa. A observação de Marcos Pimentel para Zé Thomas, Julia e Cristian busca justamente compreender as diferenças que existem em suas vidas, a partir da classe social, mas permite que as crianças fluam organicamente na frente da câmera, o carisma natural dos irmãos parece puxar a narrativa, captam como um imã a atenção para sua alegria, seus jeitos de viver e brincar, preenchendo espaços, dominando os ambientes, enquanto o menino de camiseta polo e playstation é quase sempre tímido e olha para tudo com algum receio. As filmagens antigas parecem conter pouco tempo, talvez um ou dois dias, mas são repletas de momentos riquíssimos de crianças felizes que não se apequenam diante das diferenças que separam suas favelas e o bairro de classe média do outro lado da Barragem Santa Lúcia. A chegada em 2022 ganha espaço na tela enquanto as versões adultas dos irmãos e da mãe assistem individualmente as imagens, e em cada um desses momentos é como se observassem com carinho pessoas que já se foram. Embora não tenham, é de fato pertinente o sentimento que se dá, visto que suas vidas mudaram tanto que aquelas crianças talvez sejam realmente fantasmas de uma promessa de outros caminhos que se alteraram justamente pela inconstância do mundo verdadeiro. Certamente, quando Pimentel traçou um plano de filmar as diferenças sociais de três pessoas depois de 20 anos, ele não poderia prever tudo que mudaria, mas o resultado de seu filme lida com as expectativas, com as muitas instabilidades e com o que é possível se criar, quando lidamos com vidas de verdade, longe da ficção.
A intimidade que o diretor consegue traçar com seus personagens em 2022 lembra algo que Coutinho fazia como ninguém. Entrar na casa das pessoas, e as convencer a dividir algo tão pessoal, já é um desafio, mas se inserir em suas vidas e também se tornar cúmplice delas é ainda mais difícil. Quem conhece as obras do grande mestre do nosso cinema sabe como ele era recebido a cada entrevista, assim, sua relação com seus personagens era fundamental para o resultado final. Pimentel consegue aqui, de certa forma, absorver um pouco disso, estabelecendo um vínculo com Julia, Cristian e Cristiana que o permite costurar seu filme enquanto a vida deles acontece, abraçando cada percalço que aparece e os transformando em narrativa. Ao conhecer o que se deu daquelas crianças alegres e cheias de energia, compreendemos as dificuldades que moldaram seus destinos, suas visões de mundo e, a todo tempo, vislumbramos suas versões pequenas refletidas em suas imagens atuais. Não foram só a família e o diretor que mudaram ao longo dos anos, o Brasil também mudou muito e a promessa de vida que as pequenas crianças de 2002 poderiam ter se tornou mais distante a cada ano. A política não é só o fundo das histórias de Amanhã, mas aos poucos se torna parte fundamental, também personagem do filme. Cada problema que Pimentel e sua equipe encontram para finalizar a obra vai transformando o longa e abrindo caminho para mais protagonistas.
Assim, o mandato de Bolsonaro - nunca citado nominalmente quase como um mau agouro - se torna fundamental na narrativa, por como afetou o Brasil de Julia e Cristian, e seus posicionamentos políticos, mas também pela ausência de Zé Thomas, o menino que não veremos se tornar adulto. Cresce então um rancor, entre personagens e equipe, com esse menino que foi possível conhecer tão pouco, mas que uma breve visita nas redes sociais revelou uma posição clara. A separação do país que Amanhã quer mostrar em 2002, se dá por uma linha física que separa as favelas dos prédios de classe média, que sempre existiu em todos os cantos, mas que muitos anos depois, se tornou também uma fronteira invisível de uma guerra entre ideologias que se dá até mesmo dentro das casas. A mesma classe social não impede que Julia a Cristian pensem diferente, não é óbvio entender em que caixa cada pessoa vai se colocar, ainda que suas condições possam parecer indicadores, existem tantos fatores que complicam o que cada um acredita ser a melhor escolha. Tudo isso faz parte dessa dinâmica mutável da vida, como pessoas seguem caminhos muitas vezes imprevisíveis, encontram variáveis e resultados inesperados, e ao invés de desistir de seu filme, Pimentel compreende que isso é essencialmente sua obra, mesmo que não seja o que planejou 20 anos no passado.
Ainda que tudo seja inconstante e variável, Amanhã consegue também olhar para o destino quase certo que se dá pela classe social no Brasil. Como Julia e Cristian podem não pensar da mesma forma, mas foram afetados similarmente por tudo que não estava em seus controles, mas lhes foi atribuído por onde vivem, pela cor de suas peles e suas condições. Era possivelmente muito esperado de Zé Thomas que ele se tornasse alguém alinhado com o desgoverno recente, não é surpreendente ao menos, mas a certeza realmente era de que ele teria uma vida muito mais tranquila e cheia de oportunidades que os irmãos do outro lado não tiveram. Se para a família das favelas a desigualdade joga inúmeros desafios diariamente, provavelmente Zé Thomas passou de fase com muito mais facilidade, e esse abismo só dói realmente nos personagens quando o encontro é recusado, é a rejeição de encarar suas diferenças mais uma vez que o transforma em um vilão dessa história.
Há uma cena muito bonita, de quando o Cristian adulto é apresentado. Na profundidade da tela é possível o ver bem pequeno e distante e sua semelhança com sua versão infantil é tão grande, que é como assistir ao pequenino Cristian sair por uma porta e se tornar um homem adulto aos poucos, até chegar muito próximo da lente. Ao se aproximar com intimidade desses irmãos, Amanhã observa a criança interior em cada um deles, seus sonhos e obstáculos, que representam tantas pessoas que esperavam um amanhã melhor para o Brasil e, diariamente, lutam por dias melhores com as armas que têm, em uma briga bastante injusta.
Filme assistido a convite da Sinny Assessoria e Descoloniza Filmes
Amanhã chega aos cinemas brasileiros em 29 de Fevereiro de 2024
Nota da crítica:
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