Wim Wenders busca no silêncio e nas sutilezas a beleza que se esconde na rotina e a melancolia da existência em uma sociedade cada vez mais distante
A observação da rotina metódica de Hirayama (Koji Yakusho) pode ser comparada à que Chantal Akerman propõe em Jeanne Dielman. Por provavelmente mais da metade da duração de Dias Perfeitos, o espectador é levado em uma jornada silenciosa que olha meticulosamente cada etapa dos dias desse homem, trabalhador, apaixonado por músicas, fotografias, livros e pelo céu. Mas, diferente da obra de Akerman que pretende denunciar, por meio da repetição, a invisibilidade do papel feminino na sociedade e as opressões sofridas, Wim Wenders utiliza os mesmos silêncios e ciclos para buscar uma beleza singela, um encontro de uma felicidade nas coisas simples que se espremem em uma existência compactada pelo sistema. É importante, para tanto, a revelação de que essa vida é uma escolha para Hirayama. Da mesma forma que o filme não se concentra em uma crítica social, não se demora em compreender o passado de seu protagonista, não faz parte de sua proposta se aprofundar nas escolhas que levaram Hirayama a uma vida mais simples, nem olhar para a invisibilidade de sua ocupação e papel social com um caráter mais político. Wenders compreende esses elementos e sua importância no todo de outra forma, mais sutil, os utilizando para construir o fundo dessa sociedade contemporânea cada vez menos humana, mais distante e mais desigual, para que esse homem exista nela em busca de respiros de felicidade. Os dias iguais, compostos por ações calculadas e processos meticulosos não são pesarosos para Hirayama como são para Jeanne Dielman, as mudanças na rotina o abalam, mas não destroem seu estado meditativo a ponto de o tirarem do eixo, não há uma luta de engrenagem contra o sistema, mas uma tentativa de tirar o que há de melhor dos dias, com uma alegria bastante particular e a melancolia da complexidade dessa existência.
O silêncio da quase ausência de diálogos por parte do protagonista abre espaço para os sons despercebidos nas cidades, do vento soprando nas árvores e da mulher que varre a calçada. O roteiro construído a quatro mãos pelo Alemão em parceria com o Japonês Takuma Takasaki, permite que a visão européia se misture de forma mais autêntica a uma vivência japonesa, assim, o contraste entre gerações revela costumes que se perdem aos poucos nessa sociedade, do respeito entre os mais velhos à pouca necessidade de se dizer muito. Hirayama só fala o que é necessário, se preocupa com cada detalhe de seu trabalho e vive como um relógio, mas isso não significa que ele seja uma alma triste vagando por aí limpando banheiros, pelo contrário, a atuação muito bonita de Koji Yakusho revela em seus sorrisos muito íntimos e em cada expressão facial sutil, uma alegria com os pequenos prazeres de sua vida. É uma mensagem um tanto motivacional que Wenders propõe, mas que foge do simplismo quando retrata nuances mais complexas desses sentimentos. O homem não é apenas feliz com o que dá pra ser, é sua escolha viver de forma simples e olhar pelas frestas desse mundo à procura de beleza, mas existe também a consciência das dores e tristezas, principalmente quando olha para o abandono social de alguns, e para a solidão e incompreensão com que a sociedade trata muitos. É agridoce e se acumula aos poucos, culminando em um plano que destrincha todos esses sentimentos puramente pela observação estática das mudanças no rosto de Yakusho, atestando o poder da imagem e do silêncio que abre espaço para que se enxergue muito mais.
Ainda que os encontros com outros personagens revelem bastante por meio das palavras, já que a quietude desse protagonista sirva como convite para os desabafos alheios, o exercício que Wenders propõe em Dias Perfeitos é o mesmo que Hirayama faz todos os dias, de abrir os olhos, e a escuta, para o que existe além. Seria fácil inserir uma cena em que o metódico homem diz como se sente, afinal, vivemos em uma sociedade que apesar de se distanciar cada vez mais, e isolar indivíduos, se tornou palco de muitas exposições, mas para se relacionar com as emoções de Hirayama, é preciso parar e observar o que seu rosto tem a dizer, para onde seus olhos vão e do que são feitos seus sonhos em preto e branco. Não é nada profundo demais, que confronta o estado das coisas, mas uma procura pela humanidade que parece desaparecer cada vez mais, de se relacionar com o mundo ao nosso redor pela sensibilidade e fazer o melhor que se consegue com o que se tem. A solitude do protagonista não o torna insensível ou duro, mas repleto de compaixão, tudo que pouco diz se torna um lugar de escuta e de troca com outros, e seus processos metódicos não o tornam rígido, mas cuidadoso com seu entorno.
Existem momentos em que Wenders parece usar recursos para se esclarecer, se colocando ciente de algumas fraquezas em sua ideia, mas mesmo nos pequenos incômodos se ressalta a força de toda encenação construída com seu protagonista. Talvez, Hirayama seja um resgate à essência da humanidade em meio a uma sociedade que esmaga vidas e afasta cada vez mais as pessoas umas das outras e de enxergar qualquer beleza nos dias. Não há revolução nem puramente um conformismo, mas um exercício de encontrar felicidade e encanto na realidade, olhar para cima e compreender o agora, pois ele é tudo que se tem, e usar de combustível tudo que serve de alimento para a alma - aqui no caso, os livros, as plantas, ou poucos encontros, as fitas e as fotos. Seria impossível manter um positivismo assim sem se esvaziar, e mesmo que o sorriso muito íntimo de Hirayama seja genuíno, ele também revela uma melancolia, a vida não é perfeita, mas fazemos o melhor que podemos para sermos felizes.
Filme assistido a convite da O2 Play, Mubi e CineSesc São Paulo
Dias Perfeitos chega aos cinemas brasileiros em 29 de Fevereiro de 2024
Nota da crítica:
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