Usando a tela e as obras ali iluminadas como refúgio, Jane Schoenbrun dá o afago e o sufoco na mesma medida, ao refletir sobre vidas reprimidas e o peso do tempo
Em 2021, We’re All Going to the World’s Fair colocava em questão uma geração voltada para a internet e as pequenas telas, dissolvendo a realidade nesse espelho plástico repleto de distorções, em um filme pouco visto e conhecido quanto mais se distancia de seu lugar de origem. Agora, Jane Schoenbrun aparentemente ainda não chamou atenção comercial das distribuidoras aqui no Brasil e assim como seu longa anterior, não há nenhum sinal de que veremos I Saw the TV Glow nos cinemas por aqui, conforme informação de Jane em suas redes sociais. Entre uma obra e outra, as telas aumentaram, voltando no tempo para os televisores dos anos 90 e puxando uma nostalgia pouco óbvia, que não se sustenta em citações diretas de produtos, músicas ou objetos específicos, e sim em uma sensação latente do passado, da percepção temporal a partir de uma infância permeada por padrões a serem seguidos, em que a luz do televisor era um refúgio (hoje claramente substituído pelos celulares) e os programas eram exibidos sem muito poder de escolha por parte do espectador. Há novamente essa noção de distorção, porém se World’s Fair colocava o mundo dentro das telas como algo quase perigoso que transformava sua personagem, em I Saw the TV Glow é o que está ao redor delas o simulacro ameaçador. A geração deprimida e deslocada da vez é representada por dois jovens em idades diferentes, Owen (Ian Foreman/ Justice Smith) e Maddy (Brigette Lundy-Paine) que se conectam por meio de uma série sobrenatural que parece tirada da mente de David Lynch, mas mais do que isso, a grande identificação vem da melancolia que arrasta suas vidas e os coloca na mesma sintonia, banhados pela luz rosa que Maddy já compreende e se sente tão parte, enquanto Owen começa a entender mas reluta a se entregar.
Esse mundo de comportamentos extremamente protocolares e apáticos exibido por Schoenbrun, mas visualmente banhado pelas cores da bandeira trans (bissexual também) e cheio de elementos criativos, trabalha a dualidade de seus personagens e ressalta a coragem que é preciso ter para viver. O garoto que se sente atraído pela colega de escola, não de forma romântica, mas pelo isolamento que os aproxima, e tem uma vida regrada, limitada, com a mãe sendo uma figura amável que se deteriora aos poucos enquanto o pai serve à rigidez da casa, se tornando cada vez mais uma caricatura vilanesca e silenciosa, tem medo de tudo e por isso, segue a jornada esperada e traçada para si, fugindo das regras apenas nas poucas vezes que encontra a amiga escondido para assistirem juntos à televisão. Já Maddy é o retrato da garota abandonada e negligenciada, seus responsáveis nunca são vistos, sua amiga se volta contra ela quando a sexualidade é revelada e não existem parâmetros nem limites que a conduzem, o oposto do amigo mais novo. Porém, nessa escola em que praticamente não há outros rostos em vista, ambos carregam vozes graves que rompem os grandes silêncios internos, são quietos e retraídos, de movimentos lentos, quase sempre parados, estáticos a observar algo, seja a tv ou um ao outro, se assemelham, portanto, pelo lado de dentro, ainda que a manipulação ao redor do menino o obrigue a temer a forma radical com que Maddy é também empurrada para tomar suas decisões. O The Pink Opaque se torna esse lugar de conforto entre os dois, nas gravações em VHS que a amiga deixa para Owen, que é impedido de assistir, pelo horário além de sua hora de dormir ou por ser um “programa para garotas”, nas palavras de seu pai, mas eles também se tornam refúgio um do outro, uma imagem refletida que contém algo que ao mesmo tempo é identificação e diferença.
Então, é como se Maddy fosse tanto fuga da realidade quanto The Pink Opaque é para Owen. A televisão, centro das casas, assim como vemos em I Saw the TV Glow nas salas dos personagens, praticamente criou toda uma geração nos anos 90 como agora os vídeos criam uma nova, e eram os programas que muitas vezes serviam de abrigo para tantos, dos problemas em casa, na escola, com a vida, com os corpos, enfim, tudo exatamente como vemos refletido aqui na dinâmica entre o protagonista, a amiga e a trama sobrenatural de Tara e Isabel. Enquanto Maddy tem a coragem que falta em Owen, escapando e buscando romper essa vida protocolar (e violenta) que lhes é imposta para encontrar o mundo verdadeiro em que vive como Tara, o garoto segue à risca tudo que é esperado, e vemos o tempo passar carimbado em letras rosa neon. Owen cresce, arruma um emprego, forma família, troca a televisão de tubo pela tela plana, muda de trabalho quando o antigo fica também obsoleto e finalmente, envelhece. Schoenbrun arquiteta o peso do tempo para que seja esmagador assistir a esse homem ver a vida passar, distanciando completamente seu destino do de Maddy, que escolheu viver do lado de dentro da tela, mas mantendo suas ideias plantadas.
O afago que se dava pela união de ambos, essa fuga da tristeza que os corroía, se torna um sufoco angustiante por ver dia após dia a conexão com essa fantasia se perder, a vida que passa e o tempo que só anda para frente. Tudo nessa reflexão sobre a própria existência presa pela verdade imposta pelos outros é rosa mas é triste, tudo é abraço e engasgo, carinho e dor. The Pink Opaque se torna um programa terrível, as memórias têm o mesmo destino dos televisores de tubo e a matéria enterrada de Isabel perde o ar, mas a coragem de Maddy ainda pulsa no canto da mente. Enquanto Owen grita tentando respirar, sua pele se rompe o obrigando a enxergar o reflexo de quem verdadeiramente é, e o desespero cria um diálogo que ultrapassa a tela - o tempo todo, foi ele que nos contou sua história, afinal -, como se do outro lado, quem assiste também tentasse inspirar, puxar o oxigênio junto ao velho senhor que viu sua vida passar em um piscar de olhos, melancólica, triste, sem conseguir angariar a coragem para passar para aquela outra realidade em que seu possível verdadeiro corpo padece. Ainda há tempo?
Nota da crítica:
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