Na tortura das repetições, João Canijo explora as feridas que atravessam gerações destacando o distanciamento e a incomunicabilidade
Os traumas e dificuldades das relações entre mães e filhas já foram largamente explorados no cinema, principalmente por diretores homens. O português João Canijo parece compreender seu lugar nessa equação, e seu longa que é díptico - se completa com outra obra que será lançada em sequência, Viver Mal - observa as relações entre suas personagens femininas por janelas, estabelecendo quase uma barreira invisível entre o espectador e esse mundo exibido, mesmo quando se aproxima de suas emoções. Para tanto, a câmera é em quase todo o tempo estática, fazendo movimentos pontuais para revelar algo dentro de um mesmo plano, e achata as imagens para reduzir a profundidade, o que brinca com o distanciamento entre essas mulheres. Mesmo quando estão muito afastadas, cabem em um mesmo plano, diminuindo o espaço entre seus corpos, traduzindo algo que elas parecem sentir, uma repulsa por todos os abusos e insultos sofridos e proferidos, mas que também pede validação, clama por proximidade. As imagens tendem a criar essas barreiras entre elas, destacar essa dualidade de sentimentos, corpos sempre por perto, mas repelidos como imãs. O som é trabalhado da mesma forma, em diversos momentos as vozes ficam sobrepostas, todas falam juntas sobre coisas diferentes, pontuando a incomunicabilidade entre essas mulheres que muito dizem, mas não se escutam de verdade. Há cenas em que quase não conseguimos compreender o que alguém está dizendo, já que ninguém ali realmente está ouvindo outra coisa que não seu próprio discurso.
Unindo esses elementos a uma encenação teatral, bastante marcada pela forma de observar, pelo posicionamento das atrizes e como discorrem seus textos, Canijo reforça a dureza que permeia a ligação entre as personagens. Reações bastante emocionais são sempre escondidas, removendo a imagem e deixando apenas o som - como quando a matriarca do hotel (Rita Blanco) diz que vai vender a propriedade e discute com uma das filhas e só podemos ouvir a briga - ou o oposto - quando Sara grita pela morte de Piedade (Anabela Moreira) e só podemos ver, não escutando seu desespero. Assim, prevalecem desabafos que parecem bater em barreiras, conversas sobrepostas e escutas escondidas. Piedade constantemente ouve coisas a seu respeito por diálogos em que ela não faz parte, espreitando em portas e sendo afetada por tudo que é dito, que, nesses momentos não diretos, são colocados com alguma sensibilidade, diferente das muitas ofensas proferidas cara a cara. Mal Viver trabalha as repetições dos insultos para transmitir uma tortura por meio das palavras. Testemunhamos diversas vezes mães, filhas e irmãs dizerem coisas terríveis umas às outras, no começo causando espanto, mas após tantas demonstrações, não se torna banal, não é um reforço que faz aquilo algo costumeiro, mas que desgasta, machuca, mostrando como aquelas mulheres usam o que dizem para ferir, visto que já estão também, muito feridas. Esse ciclo de ofensas é torturante e reflete em cada uma delas à sua forma.
Salomé (Madalena Almeida) usa suas palavras para tentar tirar algo da mãe, tentar reparar o abandono que sempre sentiu. Piedade usa para repelir a filha da mesma forma que se sente rejeitada de muitas maneiras pela mãe. Entre essas três personagens, Mal Viver atravessa gerações para mostrar como certas feridas não morrem, seguem um ciclo familiar quase hereditário, de mães que criam filhas inseguras, abandonadas e complexadas, para que estas criem netas da mesma forma. Isso tudo respinga nas outras personagens, criando dinâmicas com as hóspedes do hotel que destacam similaridades na forma em que elas se relacionam, com as dificuldades da família central. Canijo se aproveita de tudo visualmente, encenando um diálogo, por exemplo, entre mãe e filha numa sala, posicionando Piedade e Salomé nas pontas, cada uma ao lado de sua própria representação nas hóspedes. Esses jogos visuais do diretor, muito trabalhados no achatamento das imagens, também fazem o uso dos reflexos para aproximar suas personagens delas mesmas ou de situações, em espelhos e vidros que colocam duas mulheres lado a lado, ou quando algo é projetado nessas superfícies, colocando a reação de quem observa no mesmo campo do acontecimento. É o que ocorre quando removem o corpo de Piedade da piscina e assistimos a isso pelo reflexo do vidro, ao mesmo tempo que, através dele, está Salomé, que se recusa a observar. Mas, o filme impõe sua presença ao lado da mãe morta e da avó que observa e grita em desespero.
A forma que o diretor trabalha as emoções não é de um sentimentalismo muito próprio do melodrama, se dá de forma mais engessada para corroborar toda dificuldade que todas essas mulheres têm para se relacionar, expor seus sentimentos e os compreender. O que pode até ficar truncado muitas vezes, ainda assim funciona nessa complexidade que é querer estar perto de alguém que te faz mal, de querer ser amado por alguém que te machuca, de esperar validação de quem apenas te reprova. Em algum nível, até existe amor, muito oculto, porém o que é evidenciado é o sofrimento. Sobra dor em Mal Viver, de muitas coisas ditas que não são compreendidas, enquanto observamos mesmo que de perto, muito distantes essa realidade da qual apenas aquelas mulheres podem ser íntimas.
Filme assistido a convite da Zeta Filmes e ProCultura
Mal Viver chega aos cinemas brasileiros em 18 de Janeiro de 2024
Nota da crítica:
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