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Visions du Réel | Shahid (2024)

Narges Kalhor abre seu fazer fílmico e o divide com o espectador entre tentativas e processos de utilizar a arte como terapia e afirmação de sua narrativa feminina


Shahid 2024

Lançado como Alemão, país em que Narges Kalhor recebeu asilo há muitos anos e se formou como cineasta, mas com uma narrativa que existe puramente por seu vínculo com o Irã, Shahid se estrutura entre os muitos pilares que se formam nessas dualidades. A tensão entre o país de origem, que carrega histórias centenárias e influências marcantes em sua relação com a arte, e o país que a acolhe, possibilitando viver e trabalhar com alguma tranquilidade, é um dos caminhos que o filme percorre enquanto a Alemanha serve de cenário, largamente exagerado em suas burocracias, mas o Irã está sempre presente na dança, nas roupas, na cultura, na música e no debate sobre os muitos refugiados que não possuem a mesma sorte de Narges. Da mesma forma, o embate entre masculino e feminino e ficção e realidade, são forças fundamentais para essa obra que se faz abrindo totalmente seu processo para o público, é praticamente experimental, no sentido que diretora e equipe parecem usar suas próprias tentativas de como fazer um filme como parte indissociável do produto final. São as partes que normalmente seriam removidas do material bruto que constroem o todo, ainda que muitas vezes fique clara uma encenação programada, importa como tudo se une e é capaz de montar de forma eficaz o que a diretora quer dizer, afinal, cinema sempre é mentira, e abraçar essa ideia dentro do documentário para manipular e brincar com formas diversas de se expressar, demonstra o controle artístico de Narges dentro do descontrole que se passa dentro de sua narrativa.


É claro que fazer filmes que misturam ficção e realidade é quase uma tradição Iraniana, de Abbas Kiarostami - nascido na mesma cidade que Kalhor - ao constantemente perseguido politicamente Jafar Panahi, vê-se muito de seus cinemas em Shahid, mas também é possível encontrar um pouco de Varda, ao utilizar seu documentário como esse manifesto artístico que usa o meio para contar sua própria história. Não são as praias nem as batatas, mas o processo burocrático de remover seu sobrenome, que abre espaço para algo muito constante no cinema atual: o filme terapia. Se Varda abria sua vida, utilizando seu olhar e fazer cinematográfico como ferramentas para falar do mundo, do cinema, do capitalismo e outras narrativas maiores, o que se faz atualmente é o oposto, pegar o grande cenário e o manusear para falar de si mesmo, seus traumas e questões. Em Shahid as problemáticas dos refugiados iranianos que demoram muito a conquistarem asilo na Alemanha, são colocadas dentro do que é muito pessoal a Narges, como a diretora lida com o passado que carimba seu sobrenome e com todas as pessoas que cruzam seu caminho, antigos colegas de abrigo ou atores contratados para o longa, que não tem a mesma sorte, questionando seus privilégios de forma particular. Da mesma forma, o olhar masculino questionado na obra vem de sua experiência individual, manipulando de forma criativa sua história para que o comando dos fantasmas homens que a seguem ao lado da figura de seu bisavô, se altere para um grupo feminino quando Kalhor compreende que o que precisa contar é uma narrativa diretamente ligada à sua bisavó, então toda influência masculina se dissolve rapidamente.


Narges Kalhor

A jornada de remover o sobrenome aos poucos parece tão crucial quanto desimportante, a contradição que mora nessa intenção é que o nome que significa Mártir e carrega tantas coisas é fundamental para o que Narges está fazendo, mas também levanta tantas outras questões que se dissipa nesse meio, tanto é que ao fim, o desfecho de toda burocracia, processos e papeladas é uma resolução bastante prática que não necessita uma representação maior do que um simples risco vermelho e a remoção da palavra em seus créditos. Shahid se abre tanto ao espectador em seu processo que suas tentativas, erros e acertos são parte indispensável criando uma relação de cumplicidade em que o manifestação artística mora tanto nas belíssimas cenas de dança quanto na diretora notando que tomou um caminho equivocado em seu roteiro. É assim que de começo sua figura se esconde, utilizando a atriz Baharak Abdolifard como seu rosto e aparecendo aos poucos, em reflexos, de costas, de relance, até que a confiança entre filme, criadora e público pareça estabelecida e sua imagem se torna central.


Shahid é um filme de muitas facetas e formas que transita e se adapta a cada mudança, e ainda que todas tenham sido previstas, domina o senso de mutabilidade dessa cineasta utilizando o cinema para se comunicar consigo mesma e com o mundo, atestando seu papel de mulher realizadora e rejeitando fórmulas engessadas de contar uma história. 



 

Nota da crítica:

4/5


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