Mohammad Rasoulof alterna sua narrativa transparente e concentrada com a expressão da realidade pelo registro imediato, unindo o discurso frontal ao potencial imagético
Ultimamente, na tentativa de um cinema político em diversos cantos do mundo, uma parcela da linguagem tende a ser expositiva demais, didática e, no processo de dizer tudo que precisa ser dito nos mínimos detalhes, o discurso torna-se raso, empobrecido, esquecendo que as imagens tem tanto poder de debate quanto as palavras, ou talvez até mais em alguns cenários, servindo também para completar o texto, o realçar e, algumas vezes, torná-lo dispensável. Há uma linha fina que nos últimos anos tem sido difícil de se caminhar para alguns cineastas de como usar o cinema como protesto, grito, confronto ou denúncia, deixando claras suas intenções sem necessariamente mastigar uma mensagem pronta para que a pessoa espectadora não precise fazer esse trabalho por si. O exercício de Mohammad Rasoulof em A Semente Do Fruto Sagrado (The Seed of the Sacred Fig) não é diametralmente oposto a isso, mas um meio do caminho que encontra nas alusões nada sutis e na exposição bastante clara de seus temas e diálogos com o cenário político, um acordo sofisticado com a metáfora visual. Há em certa medida um desconforto com a insistência no discurso muito frontal, não logo de cara, mas à medida que a duração se alonga, que é aliviado pela urgência pautada nas imagens reais de protestos e confrontos, escancarando um “aqui e agora” que fundamenta a base de uma crítica tão transparente, e pela tensão criada ao redor da paranoia do patriarca, sempre movimentando o filme em frente para que seus minutos finais, em que a imagem casa com o discurso de forma mais interessante no labirinto, sejam muito esperados sem que ao menos seja possível cogitar qual seria sua conclusão.
Seguindo uma tradição do cinema político no Irã, de cineastas perseguidos e de mesclar ficção e realidade, Mohammad Rasoulof aproveita um recurso do tempo presente de forma pertinente, insere em sua obra imagens reais na vertical, unindo-as ao uso dos celulares pelas personagens Rezvan (Mahsa Rostami) e Sana (Setareh Maleki), para elaborar uma compreensão das câmeras na atualidade como registro da verdade e dos aparelhos como comunicação que ultrapassa as barreiras ditatoriais, servem para buscar e passar mensagens que conectam diretamente as pessoas, ou seja, rompem aquilo que é dado pelo regime por meio das mídias. Ao alterar a razão de aspecto abruptamente na tela, com as imagens de celulares, A Semente Do Fruto Sagrado não apenas demarca uma transição entre a história fabricada que fala diretamente da realidade e o que acontece verdadeiramente nas ruas, sem manipulações, como também reforça o dispositivo individual e pessoal em forma de armamento da população. Não é somente no cinema que Rasoulof enxerga essa revolução, a possibilidade de com sua obra denunciar ao mundo o que acontece no Irã, mas também o usa como plataforma dos registros urgentes, dos muitos olhos que captam o momento. Essa potência é provavelmente o agravante que o fez ser condenado pelo regime e fugir para poder exibir seu filme no maior festival de cinema do mundo, uma história que, junto ao resultado do longa, gerou expectativas de uma premiação mais alinhada com seu propósito, sua jornada e o efeito que A Semente Do Fruto Sagrado cria a carrega, ainda que o júri apenas tenha inventado uma consolação no lugar do prêmio principal.
Para falar politicamente do que acontece no país, Rasoulof quase fecha sua observação no núcleo familiar protagonista, sem permitir que um personagem específico seja o foco constante, mas alternando esse centro. O lar se torna opressivo em cada canto e gesto, os laços vão sendo rompidos, a ditadura adentra o apartamento quase pacificamente, já que é vista pelo casal como uma possibilidade de ascensão social, de uma casa e condições melhores financeiras, em um pacto que o patriarca assume de fechar os olhos e tomar ação, sufocando ao mesmo tempo aqueles ao seu lado. Espacialmente falando, o mundo externo pouco existe nas cenas, ele é construído a partir da tensão constante, dos diálogos, da pressão e desconfiança colocada na família e, é claro, das imagens de arquivo. Isso não quer dizer que o longa faz uma grande metáfora totalmente distante de seu objetivo principal, como já foi bem dito no começo do texto, o discurso é claro, frontal e próximo, mas não pretende reconstruir os conflitos, e, sim, os expor com a própria realidade. Assim, protestos, slogans e afins, são vistos nas cenas reais ou, ouvidos no campo externo das cenas, como se essa porção factual da obra dependesse exclusivamente das ruas, enquanto o ambiente interno, controlado pela produção cinematográfica, se ativesse à crítica muito própria do cineasta. Não é seu interesse dizer o que acontece somente por sua perspectiva e sim, mostrar esse olhar coletivo.
O confronto entre Iman (Misagh Zare), como a representação desse cidadão complexamente corrompido pelo regime para ser executor de suas ordens, com a esposa (Soheila Golestani) e as filhas, aos poucos dá espaço para que as mulheres se tornem mais protagonistas e assumam a ação, já que é a própria liberdade feminina e a opressão religiosa que esmaga essa parcela da população a grande pauta. São as três mulheres contra Iman, ou contra o regime, sem que suas decisões e atitudes sejam sempre reveladas explicitamente à pessoa espectadora, mas constantemente colocadas aprisionadas e sufocadas, em uma gradual tomada de poder do pai e sua espiral de paranoia. A chamada à mudança, o clamor pela ação revolucionária que é capaz de transformar a dinâmica, é depositada totalmente nas mulheres, especialmente buscando nas gerações mais jovens essa necessidade, um embate geracional.
Os muitos minutos finais de A Semente Do Fruto Sagrado são quase um thriller, uma lógica que Rasoulof aplica em sua encenação apertando as cenas, elevando a tensão e distanciando sua obra do debate mais didático que vinha sendo feito. Nesse horror, quase um curta dentro do longa, as personagens femininas podem sobreviver juntas, mas, para isso, precisam remover o poder das mãos do opressor que as persegue. Une-se o discurso frontal com a potência imagética, porém certamente o maior impacto que fica é justamente das imagens. Não é surpresa nenhuma então, como Rasoulof incomodou tanto aqueles que critica.
Nota da crítica: