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Foto do escritorRaissa Ferreira

Crítica - Aqui (2024)

Romântico com o presente e atento aos ciclos e frustrações da vida, Robert Zemeckis dá alma às possibilidades da tecnologia no cinema

Aqui Here Filme 2024

Com décadas de carreira, é fascinante como Robert Zemeckis continua explorando o cinema e novas formas de contar suas histórias, dessa vez se desafiando com uma obra que funciona muito por seu próprio formato, a graphic novel de mesmo nome de Richard McGuire, que assume os quadrinhos como janelas do tempo e economiza nas palavras, permitindo que a narrativa seja sentida por como os anos se passam no mesmo ângulo desenhado. O roteiro de Zemeckis e Eric Roth preenche essa adaptação, então, com famílias estadunidenses, seus sonhos e frustrações cunhados na propriedade privada mais emblemática desta sociedade, a casa comprada e repetidamente hipotecada. Aqui (Here) se apropria do mesmo recurso de sua inspiração impressa, delimitando quadros que dividem o mesmo plano, e em que o tempo se altera, elabora cenários e diálogos muito similares, por vezes até idênticos, mas com um foco principal criado como espinha do longa, que preenche, conecta as muitas linhas e sustenta a narrativa mais solta e de ponto de vista fixo por toda sua duração. A jornada da família de Richard (Tom Hanks) e Margaret (Robin Wright) passa pelas banalidades da vida, sem uma aproximação dramática a grandes acontecimentos específicos, afinal, o maior evento é a vida acontecendo verdadeiramente, principalmente em seus pequenos detalhes, e unindo-se a outras histórias vividas no mesmo espaço, do meteoro que acaba com os dinossauros digitais a momentos triviais entre casais, festas, brigas, descobertas e lutos. É tão relevante o nascimento de uma sociedade quanto encontrar um objeto perdido nas almofadas do sofá. 


A encenação do filme funciona mais na lógica do teatro, porém com uma artificialidade visual bem carregada. Com a câmera fixa servindo de marcação da observação, os atores precisam se posicionar e se movimentar sempre nesse sentido, então o close para reforçar um sentimento é quase impossível, só existe quando os personagens caminham até a frente, permitindo que a pessoa espectadora veja melhor seu rosto, embora a lente o torne um tanto distorcido e revele sua plasticidade. Zemeckis traz o tempo atual em pauta ao aplicar tecnologias com a polêmica inteligência artificial para adaptar a idade de seus atores ao longo da obra, ao invés de usar maquiagem ou trocar o elenco a cada fase. Os créditos não mentem, há uma lista extensa de profissionais que fizeram esse projeto funcionar, mas é difícil fugir de como essa técnica emprega artificialidade e, talvez por isso, o cineasta assume a falta de naturalidade estética e a alinha com seu propósito mais humano. Logo, as falas são pronunciadas com mais intensidade, o que acompanha essa atmosfera sintética, as ações são delimitadas ao espaço do “palco” e tudo se volta para a janela de observação, algo entre uma espionagem meio alienígena que se infiltra no lar e uma viagem no tempo fabricada apenas para contar essa história. No entanto, tudo vivenciado é bastante alinhado com a realidade, próximo de todas as dores, frustrações e alegrias da humanidade, ainda que projetado como uma ilusão plástica. Há tanta alma no que se sente por esses personagens, ao mesmo tempo em que o distanciamento desses objetos a serem estudados é inevitável. 


Por mais que a conexão com os personagens pareça complicada, por essa distância empregada naturalmente devido à proposta narrativa, há algo universal em Aqui que o torna emocionante. Todas as expectativas de uma vida, em qualquer período do tempo, e a sociedade cheia dos mesmos ideais e problemas a cada nova geração, são fatores que conectam pessoas pelo peso do tempo e de se viver, da busca por um futuro, da angústia do presente e a lembrança do passado. Mais do que o que acontece individualmente com uma mulher que abandona seus projetos e luta para conquistar seu próprio espaço, está uma história de nosso tempo e das gerações anteriores, estagnada na mesma busca, com os mesmos fracassos e desejos, passando pelo tempo sem se mover. A casa, como bem material, serve como garantia financeira, sempre destacada nos pedidos de hipoteca que resgatam as famílias ou acumulam dívidas, é pontuada como acima ou abaixo de um mercado que indica a situação econômica do país através do tempo, acompanhando uma série de repetições a cada janela, de famílias que encontram nesse cenário sólido uma possibilidade de futuro e vivem seus presentes repletos de percalços comuns. Enquanto espaço físico, o lar se altera ao longo dos anos, refletindo seu tempo pelas cores e decorações que se perdem, sendo a casa mais recente a mais branca e sem personalidade, com uma modernidade que não cria raízes, enquanto os tempos passados vivem longos anos com a sala repleta de cores e objetos mais vivos. 


Zemeckis se diverte conectando cenas, ligando histórias que se espalham pelo tempo, mas dividem o mesmo espaço e, por isso, cortes misturam acontecimentos e sons, anos se empilham na tela e é até impressionante como o diretor “rouba” poucas vezes na sua limitação proposital, com espelhos para mostrar o que há do outro lado da sala, ou uma transparência que revela a calçada da frente. Com muito sentimentalismo, Aqui ilustra a vida que acontece entre uma coisa e outra, entre um quadro e outro, não é o passado que se idealiza romanticamente, este é visto com bastante consciência, mas o presente.


 

Nota da crítica:

3.5/5


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