Possibilitando características de uma infância negada, em cenário de amadurecimento forçado, Andrea Arnold afina as linhas da liberdade e imaginação
A analogia mais óbvia possível deve ser o pássaro que representa a liberdade. Andrea Arnold, muito consciente dessa facilidade, apresenta a imagem a todo instante, reforça a ligação o máximo possível, preparando um terreno que em dado momento fará a obviedade se revelar na verdade, a ingenuidade que domina o olhar de Bird. A encenação preza pelo ar, pelos ares ao redor das cenas, com uma câmera livre, agitada, acompanhando personagens que estão atrelados a uma ideia mais complicada de liberdade, a de não ter opção além da vida solta que possuem. Juventudes negligenciadas são parte crucial da obra de Arnold, que agora retorna às periferias britânicas para observar o amadurecimento ciclicamente abandonado. Adolescentes carregam o despertar sexual apressado como máscara de maturidade, formam famílias aos 14 anos, compõe um sistema que se alimenta, é autossuficiente em sua miséria, por sempre garantir que a próxima leva de crianças será tão abandonada quanto a última. Assim, Bug (Barry Keoghan) não é a caricatura simplista de um péssimo pai e um homem terrível, mas um jovem que teve filhos cedo demais e é produto desse mesmo ambiente negligente. Bailey (Nykiya Adams) vive uma fase importante enquanto mulher em desenvolvimento em meio a um mundo bastante duro, com homens imaturos ao seu redor e pouca escolha do destino, observando outras, como sua mãe, serem vítimas de violências. É assim que a inocência do olhar constroi a fantasia, apresentando Bird (Franz Rogowski) com uma corporeidade que transmite segurança, o ideal de proteção e confiança que uma menina de 12 anos não possui mas deseja. A instabilidade ao redor de Bailey é dada com tanta delicadeza, dessa magia do conto juvenil, da fábula, mas não esconde a brutalidade de seu universo, a realidade cruel por uma visão ainda tão inexperiente.
As primeiras cenas do filme são determinantes para estabelecer seus personagens e como estes serão retratados. Bailey faz birra, mostrando que, apesar de seu amadurecimento, ainda tenta parecer mais dura e experiente do que é, usando justamente a sexualidade como parâmetro em dado momento. Bug primeiro parece um amigo, até que se compreenda por quem assiste que ele é o pai, suas atitudes logo são, apesar de entendidas como problemáticas, suavizadas por sua própria falta de amadurecimento e ambiente em que está inserido. A mãe da protagonista, ocultada por um bom tempo, pode ser apresentada como mais uma negligente com tantas crianças largadas em uma casa cheia de drogas e adultos chapados, mas, é também uma vítima. Os adultos estão longe de serem os únicos culpados e vilões fáceis de Bird, até por isso, a figura fantástica de guardião é também um adulto, mas um infantilizado, carregando os traços mais genuínos da infância. São estas, a possibilidade de ser inocente, ingênuo, vulnerável e se sentir seguro com sua própria demonstração de imaturidade, as características negadas a todos os personagens, pais, mães e filhos, sistematicamente forçados a crescerem, empurrados a criarem outros humanos, sem a chance de vivenciar suas fases e qualquer ideia de segurança e estabilidade. Por isso, a câmera se move rapidamente, balança, se perde, olha por janelas e molduras de um exterior limitado, vê no voar não a tal da liberdade, que é mais um fardo do que um benefício para os sujeitos retratados, mas a possibilidade de estar firme no cenário mutável.
O que parece pulsar nas cenas de Bird é justamente essa impressão de que ser livre nem sempre é algo bom. Isso porque Bailey é, de certa forma, bastante livre, em um sentido que não há amarras em seu cotidiano pois também lhe falta qualquer chão para pisar. Não há conta a se prestar, mas também não há cuidado. Nessa mesma dualidade que o termo pode demonstrar, apresenta-se a construção familiar. De casa, do pai jovem, o irmão inconstante e a mãe vítima, Bailey pouco pode esperar, por isso se apega a Bird como guardião e esperança, mas essa situação é subvertida ao ponto que Bug mostra como pode cuidar e compreender o filho, como os três podem permanecer unidos, como o afeto pode fazer parte importante na família. Embora a miséria e o abandono sejam regras nesse sistema, é quase como se pais e filhos estivessem no mesmo lugar, em pé de igualdade no desenvolvimento e amadurecimento, assim, Arnold garante que seus personagens não sejam ruins ou bons, mas consequências de um emaranhado, à margem nesse cenário urbano que se mistura a suas movimentações, peles e vozes. É quase como se Bailey fosse tão parte das ruas quanto de seu próprio corpo, vigiada pela figura no topo do prédio, olhando por janelas e cruzando o cinza sempre buscando o céu.
No fim, como em outros de seus trabalhos, Bird não quer desenhar um horizonte impossível para pessoas com linhas bem delimitadas, mas enxergar com seus olhos as frestas de luz que encontram. Para Bailey, Arnold vai mais longe, permitindo que além da realidade, e na dúvida dessa possibilidade, existam refúgios. É, na verdade, quase um coming of age bastante comum, em que a protagonista passa pelo amadurecimento enfrentando um cenário duro, mas enquanto aprende a compreender os adultos ao seu redor, ver apesar de suas lentes inflamadas da juventude e a conviver com sua realidade, lhe é permitido ser criança, ter segurança, imaginar e ser acolhida, ainda que seu contexto permaneça o mesmo.
Nota da crítica:
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