Relato sincero e bastante pessoal de Elizabeth Sankey une seu desabafo com um paralelo entre as representações das Bruxas e a saúde mental pós-parto
Operando, primeiramente, como uma espécie de documentário found footage, Elizabeth Sankey monta sua narrativa a partir das representações de bruxas no cinema e na televisão, dos mais recentes aos mais antigos, de referências óbvias a outras menos recorrentes nas memórias de um histórico audiovisual representando a bruxaria. A diretora caminha em uma introdução que finalmente chega a seu ponto central: a saúde mental pós-parto. Tema recorrente de obras em diversos períodos do tempo e por inúmeras perspectivas, curiosamente parece se relacionar à abordagem de um filme de terror deste mesmo ano, Salve Maria, de Mar Coll, que também usa a história conhecida de uma mãe que afogou os filhos na banheira como pontapé inicial de um debate acerca da mente da protagonista que acabara de se tornar mãe. Em Bruxas, no entanto, há um viés muito mais pessoal, é a própria história e experiência de Elizabeth que será retratada e, para isso, a diretora se insere além da narração que já abre o longa, colocando seu rosto em cena para partilhar o que vive e viveu e, também, para encenar sua representação de uma bruxa a partir do imaginário comum. Assim, elementos de florestas se tornam parte dos cenários, embora o filme seja no estilo talking heads, bem protocolar em como filma suas entrevistas, insere essas pequenas pistas de um visual que brinca com a ideia de que todas ali também são bruxas. Costura-se, então, entre depoimentos de mulheres e imagens emprestadas de outras obras, um paralelo entre a bruxaria histórica que condenou e matou tantas, com a vivência da saúde mental pós-parto atual, relacionando os demônios escondidos nas mentes com relatos antigos, confissões e condenações. O que chama a atenção é que, com esse trabalho, Elizabeth acaba por mostrar toda a estrutura do sistema de saúde britânico, que mesmo assim se mostra insuficiente para acolher as demandas das bruxas contemporâneas.
Há outra obra que chega quase ao mesmo tempo que Bruxas e parece solucionar algumas questões que ela levanta, o austríaco The Devil’s Bath que busca ilustrar como mulheres no século 18 assassinavam crianças para serem condenadas à morte, uma alternativa ao suícidio que era desaprovado pela igreja. São diversos filmes e livros que se conectam ao longa de Elizabeth, que como uma tradição do cinema independente feminino, escreve, dirige e edita sua própria obra, e, talvez por isso, seu trabalho de pesquisa não é tão profundo, focando-se mais no que lhe é próximo, sua própria experiência, seus pensamentos e reflexões ao redor disso e do que as mulheres que conheceu nessa jornada têm a acrescentar. É impossível não assistir aos depoimentos e relacionar as questões ao capitalismo, ao trabalho de Silvia Federici e pensar como em diversos outros lugares do mundo essa dor é ainda mais sentida. O documentário até pensa o cenário dos Estados Unidos em dado momento, visto que uma das participantes esteve lá em tratamento, e também traz a pauta de mulheres não brancas e o agravamento da negligência com essas pessoas, mas tudo sempre atravessa a perspectiva da narradora, então, é uma narrativa que deixa claro todo o universo que existe além, mas se mantém perto de quem conta a história.
Talvez as conclusões às quais Elizabeth chega com seu filme sejam até bem óbvias caso a pessoa espectadora já esteja familiarizada com outros trabalhos e pesquisas na mesma linha, mas, fica claro que Bruxas é também um desabafo pessoal dessa mulher e seu diferencial reside na sinceridade em partilhar um tratamento médico, algo que tantas pessoas não têm facilidade em abrir publicamente, mostrando a importância de buscar essa ajuda e, principalmente, dela existir como foi disponibilizada para a diretora. O que as muitas entrevistadas costuram com suas falas é uma tentativa de normalizar o ato de deixar seus demônios saírem, não guardar para si e compreender que a mente feminina ainda é muito negligenciada na sociedade por conta dos julgamentos. Mulheres carregam o medo de dizerem o que pensam e sentem e serem punidas, preferindo esconder ou agir de forma a encerrar o sofrimento. Não há uma conclusão de Bruxas ou Elizabeth sobre como o futuro pode ser mais fácil e por quais motivos as mulheres ainda carregam tanta culpa e horror em suas mentes, centenas de anos distantes das fogueiras e enforcamentos. Seu principal trabalho é sincero e pessoal, quase individual, de deixar seu relato para que ele ressoe em outras pessoas, mostrando com as imagens que o cinema criou como a ilusão da representação também carrega muita realidade.
Filme assistido a convite da Mubi - Bruxas está disponível com exclusividade no streaming
Nota da crítica:
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