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Crítica - Cidade; Campo (2024)

Com sensibilidade para a mística humana, Juliana Rojas espelha histórias de recomeços que confrontam mulheres com os espaços e suas próprias naturezas

Crítica Cidade; Campo Juliana Rojas

A sala está cheia na pré-estreia de Cidade; Campo em São Paulo quando Juliana Rojas apresenta o filme e pede que cada integrante de sua equipe e elenco se levante para ir até o seu lado. Imediatamente, é como se metade da sala migrasse para a frente da tela, unidos em uma linha diversa, mas repleta de mulheres, com rostos bastante conhecidos do nosso cinema e outros ainda um tanto novos. Sara Silveira fala sobre o trabalho e Cristina Amaral sobre a montagem, pedaços da história se juntam para conduzir coletivamente esse barco que é a nova obra de Rojas, mas que, ao ouvir tantas vozes, parece um pouco de cada uma dessas pessoas também. É até curioso fazer essa transição de ver um grupo grande e ao começar o filme, adentrar um universo em que há tanto espaço para as personagens viverem suas jornadas individuais. Com dois blocos que dividem, mas não separam completamente, Cidade; Campo se estrutura exatamente como o caractere gramatical que seu título indica, há uma pausa longa que torna cada história independente, mas as contrasta por algo impalpável. Mulheres recomeçam suas vidas em ambientes totalmente novos, lançam suas vidas em um espaço desconhecido e seus corpos necessitam adaptação, ao trabalho, ao céu, ar e habitantes ao redor, encontrando mais do que desafios práticos, enquanto são confrontadas por suas próprias naturezas. A fantasia tão comum à carreira de Rojas, aqui se apresenta pela mística humana em relação ao mundo, dos fantasmas que as assombram aos laços ancestrais encontrados, tudo é lidado com imensa sensibilidade pelo filme, travando jornadas íntimas para as protagonistas que estão em busca de si mesmas quando suas próprias essências parecem perdidas junto ao passado. 


Questões sociais que acompanham as mudanças do mundo e afetam os indivíduos sempre foram presentes na filmografia de Rojas, e em Cidade; Campo não é diferente. A involução trabalhista é tanto vista em como Joana (Fernanda Vianna) precisa buscar uma fonte de renda em um aplicativo que precariza sua força de trabalho - nada mais comum ao mundo atual -, como em quando Mara (Bruna Linzmeyer) desabafa sobre os antigos empregos dela e de Flavia (Mirella Façanha), presas a escritórios, telas e uma rotina sem vida. Assim como o próprio motivo de Joana ser obrigada a recomeçar sua vida de forma totalmente diferente é também uma causa da ação humana focada no capital, espelhada no campo vazio e devastado pelo plantio de soja que o casal encontra na segunda metade do filme. Esses debates são costurados naturalmente em meio às narrativas dessas mulheres afetadas pelas consequências, mas com enfoque mais dedicado a como se adaptam, se erguem e seguem em frente. É o ser humano feminino e sua forma de se relacionar com o meio, o grande fio que conecta tudo em Cidade; Campo, deixando uma pequena caixa de objetos e uma carta serem a evidência física desse contato entre começo, meio e fim. As circunstâncias que forçam a migração de Joana de sua terra até uma cidade grande de concreto se relacionam com as de Flavia e Mara para fazer o caminho contrário, mas mais do que isso, Rojas sempre encontra pontos que as liguem por uma mística humana que parece conectar todos nós, a mesma que faz um espectador se identificar com uma obra e encontrar a si mesmo na jornada do outro. 


Joana vive um luto, por toda uma vida, uma casa, seu cavalo Alecrim e seu relacionamento com a terra e tudo que nasce dela, fazendo tudo o que é preciso para se encaixar no novo meio e encontrando pequenos pedaços para plantar e colocar seus pés. A mulher, brilhantemente interpretada por Fernanda Vianna, passa tanta força quanto tranquilidade em seu recomeço, embora nunca deixe de demonstrar a falta que seu passado faz. Flavia e Mara partilham um começar do zero no meio da natureza, esperando que a morte que as levou até ali faça florescer novos caminhos. Mas, ao longo dessa estrada, o filme individualiza suas histórias, sendo necessário que cada personagem tenha sua própria relação com o mundo e suas questões, com uma ruptura marcada pela bela cena em que a visão romantizada do sexo é removida para que sobre o olhar humano do afeto partilhado entre dois corpos tão diferentes. Nas duas metades pontuadas da narrativa, as três mulheres enfrentam desafios completamente novos a suas rotinas, e precisam buscar no céu a noção de que ainda estão no mesmo universo. O horizonte de Joana que antes era vasto e verde, se torna o aceno por uma janela a outra trabalhadora, o dia a dia burocrático de Flavia se transforma na tentativa constante de tirar alguma vida do solo infértil deixado pelo pai. Quando unem-se os aspectos, ao se permitir adentrar nessa trajetória, é possível ver que Cidade; Campo só enxerga a possibilidade de construir perspectivas a partir das mãos femininas, o seguir em frente dessa sociedade quebrada, em que o contato com a natureza se rompe pelas mudanças constantes de uma dita “evolução”, só existe pelas mulheres que sempre encontram formas de sobreviver depois do fim.


Juliana Rojas, sua equipe, e elenco repleto de figuras femininas, tecem então uma sensibilidade muito humana que se relaciona com o mundo que foi deixado para nós, refletindo o que há de novo a se construir depois de uma perda total. Nesse lugar, a natureza abriga a fantasia para tornar visível o que há internamente, essas buscas e lutas que acontecem emocionalmente, no peito ou na cabeça, têm espaço para se manifestar de forma concreta a partir da transição em que as personagens vivem. Ao mesmo tempo em que enxerga tudo que há de errado ao ponto em que estamos da sociedade, também vê algum futuro. Mesmo que tudo acabe, ciclos se encerram para que outros se iniciem. 


Filme assistido a convite da Trombone Comunica e Vitrine Filmes

Cidade; Campo chega aos cinemas brasileiros em 29 de Agosto de 2024


 

Nota da crítica:

3,5/5


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