Transitando entre tons, Sean Durkin leva o ringue do espetáculo grandioso da comunhão familiar às trevas obscuras de um drama dilacerante
Núcleos familiares são muitas vezes lugares de dores e amores. Essa complexidade que mora em relações quase obrigatórias estabelecidas pelas origens e que moldam personalidades e destinos, nem sempre são fáceis de serem trabalhadas em todas as suas nuances. O que Sean Durkin faz em Garra de Ferro (The Iron Claw) é seguir uma linha que gradualmente muda seu tom para expor aos poucos as dolorosas consequências de um sistema opressivo, principalmente pela masculinidade. O segredo para a grandiosidade e para o impacto que deixa no espectador está em como o filme não é um drama pungente logo de cara, mas constrói inicialmente uma história amorosa que ri de si mesma, e compreende o ridículo do exagero masculino, da exaltação dos corpos e do culto aos mesmos, do espetáculo das lutas que leva a violência a um nível cômico e da ingenuidade dos meninos que são quase gigantes musculosos de cuecas que não sabem nada da vida além de lutar e ser uma família. Essa narrativa calorosa envolve, aproxima, muito também pelo ótimo trabalho do elenco. Zac Efron dá vida a um Kevin doce na mesma medida em que é fisicamente forte, como uma casca grossa que é macia por dentro, seus olhos sempre revelam uma ternura, além de exalar toda a dor que esse homem carrega. Toda a relação entre os irmãos Von Erich parece ser unida pela proteção desse irmão mais velho, mas cada um deles possui características e personalidades trabalhadas individualmente, o que reforça toda devastação que virá no decorrer do longa. A mudança de tom que leva esse mundo alegre de ringues brilhantes e união até uma solidão dolorosa é de um impacto que perdura além do filme, confiando a intimidade desse mundo ao espectador para dilacerar essa estrutura como a própria vida fez.
Tudo é belo e brutal em Garra de Ferro. Para contar uma história real tão triste seria fácil apelar a um dramalhão biográfico que se escora nas próprias tragédias para tirar sentimentos do público. Mas ainda que o filme de Durkin nos avise no começo que tirou seus fatos da realidade, é bem possível esquecer ao longo de sua duração que aquilo não é apenas ficção. O que para Kevin é uma maldição, se dá em tantos eventos traumáticos que é difícil pensar que não são todos roteirizados, apenas criados para um filme. A abordagem que o diretor dá para essas muitas perdas e dores familiares não busca porém a maldição no sentido espiritual da coisa, encontra culpados reais na criação opressiva do patriarca Fritz (Holt McCallany) e nos traços mais maléficos da masculinidade. O incentivo desde os primeiros anos de vida à luta, a imposição a um certo estilo de vida, e a um certo tipo de corpo, a constante competição colocada entre os irmãos pela atenção do pai. Mesmo enquanto o filme tem seus tons mais felizes, Fritz existe como um general destrutivo com grande influência em tudo que os meninos farão. Doris (Maura Tierney) está lá então como uma figura apagada, a mãe sempre escanteada nesse mundo masculino, se apegando em sua fé para manter alguma ordem. Não é que o filme propositalmente não dê espaço para as mulheres, mas ao trabalhar uma história tão necessariamente masculina, o diretor compreende bem o papel das figuras femininas e as aplica ou para fortalecer seu ponto, ou como contraste. Pam (Lily James) em suas poucas aparições é sempre o elemento que tenta puxar Kevin para a razão e o tirar da escuridão, mas só ele mesmo é capaz disso, a esposa é apenas um lembrete de que é possível viver outros caminhos.
A mudança que transforma esse filme está em todos os elementos, da forma como o ringue é filmado no começo até a expressão facial final de Zac Efron. As lutas que primeiramente são exibidas como algo grandioso e brilhante, por vezes jogando o espectador dentro das cordas e em outras realizando a comunhão entre público e lutadores, parecem pouco ferir os irmãos. Suas acrobacias e golpes só geram suor, suas imagens são de ídolos, numa crescente que pode ser vista como boa sorte, mas vem muito da cumplicidade entre Kevin, Kerry (Jeremy Allen White) e David (Harris Dickinson). É como diz o protagonista quando conhece Pam, ele gostaria de fazer qualquer coisa com seus irmãos. Quando a pressão do patriarca vai se tornando cada vez pior com David, o sangue começa a surgir, como uma doença, mas também nos ringues. Tudo se torna mais violento, todos começam a se machucar por dentro e por fora. É como se, enquanto Kevin fosse o único alvo de seu pai, ele fosse capaz de absorver os golpes e seguir em frente, mas seus irmãos recebem com mais impacto a dura criação do general. Aos poucos, Garra de Ferro perde um a um seus meninos, a lógica da irmandade que foi feita para eles como uma redoma segura, o lugar em que se conversa, se brinca e se ama, é arruinado. Os Von Erich se tornam adultos ao mesmo tempo em que o ranking de preferência do pai vai se alterando, mas continuam sendo apenas garotos clamando pelo amor desse líder.
É dilacerante acompanhar a mudança no semblante de Kevin a cada golpe que a vida lhe dá, sendo retratado pelo filme cada vez mais assombrado pela maldição em que crê, perdendo a força que seus companheiros transmitiam, impotente na função de os proteger. Toda a forma como Durkin trabalha esse afeto, colocando quem assiste tão próximo dessa família, é quase uma armadilha para que as perdas sejam sentidas com mais impacto, e o trabalho de Efron se torna uma ótima isca. Talvez seja muito difícil escapar do destino que uma família determina no caminho de cada um, seja por questões genéticas, uma paixão compartilhada, tradições ou traumas impostos, mas, certamente, o melhor antídoto para essas maldições é começar uma nova estrutura familiar, na configuração que mais fizer sentido, e construir a própria sorte. É nesse momento que o letreiro na tela - o recurso mais simples que existe para descrever algo - se une a uma imagem de uma grande família para dar um último tranco, do brutal ao belo, mais uma vez.
Filme assistido a convite da Sinny Assessoria e Comunicação e California Filmes
Garra de Ferro chega aos cinemas brasileiros em 7 de Março de 2024
Nota da crítica:
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