Consolidando sua habilidade para compor planos e questionar, Clint Eastwood rejeita sentenças definitivas e deleita-se com a complexidade humana
O cuidado que Justin Kemp (Nicholas Hoult) tem com a esposa (Zoey Deutch) na introdução de Jurado Nº 2, demonstra não apenas a construção da família americana perfeita, esse ideal conservador, como também algo muito importante que Clint Eastwood colocará na balança ao longo de todo seu filme, a culpa. Ainda de forma muito leve, é possível compreender quando a carta de convocação para o júri é revelada na mesa, quebrando o clima de sonho do casal à espera do primeiro filho, que aquele homem passa por um processo de culpa que o faz se aplicar ainda mais dentro de casa. A mulher, vendada, como a figura da justiça, tem sua visão tampada para que uma surpresa seja revelada. É assim que Eastwood abre seu longa e já demonstra em poucos minutos como sua composição de planos magistral resulta em seu melhor trabalho dos últimos anos. Cada cena é arquitetada para que a incerteza, o julgamento ou a culpa, pesem na balança, com um cinema que ousa questionar, se valer da complexidade do que não é dado, firmado, comprovado e validado, que saboreia a dúvida, as nuances humanas de caráter e a ideia de que entre o certo e o errado existem um milhão de possibilidades. Então, o protagonista todo construído milimetricamente para ser o bom moço, dos olhos claros até cada gesto cuidadoso, com planos que fazem questão de destacar suas boas ações, é inserido no banco do júri na posição de julgamento, de quem decide o destino de um acusado, no entanto, essa posição é radicalmente alterada. Jurado Nº 2 não apenas confronta o sistema o observando por dentro, como diversos filmes de tribunais, sendo o mais clássico 12 Homens e uma Sentença, mas coloca o próprio culpado em posição de definir, manipular e balançar os processos. A descoberta dessa reviravolta (com pitadas de A Mulher Sem Cabeça) se dá ao mesmo tempo para Justin e para a pessoa espectadora, garantindo que o desenrolar seja uma observação quase imediata de respostas de humanos ao que cabe em suas crenças e morais, e que jamais se curva ao que é fácil, simples ou absoluto.
Se em Rashomon, Akira Kurosawa colocava seus personagens para relatarem os ocorridos de acordo com seus próprios pontos de vista para uma câmera que traz a sensação de que quem assiste é quem tem o poder de julgar, em Jurado Nº 2, os planos centralizam Justin em um lugar imaginário de réu, fazendo com que os discursos de defesa e acusação caiam como pedras sobre esse homem, sempre o rondando com as palavras intercaladas pela montagem para construir uma história que é feita de muitas perspectivas, e deduções, mas que se empilham sobre esse único jurado que une todas elas. A atuação contida de Nicholas Hoult serve a dois propósitos importantíssimos que enriquecem o longa. O mocinho que se descobre no lugar de culpado e revela aos poucos um passado mais sombrio, carrega em si uma imensidão de emoções e complexidades morais, escondidas na figura amigável, bem arrumada, que passa uma mensagem muito mais simples. E, nesse mesmo sentido, a forma como o personagem se mistura aos outros visualmente. Todos os figurinos são bastante sóbrios, sem cores que se destacam, peças básicas e casuais em tons neutros, que compõem uma estética presente em todas as escolhas de cenários e fotografia. Eastwood preza por ilustrar uma sociedade comum e banal para expor o que se esconde nessa fachada simplista. Assim, Justin destaca-se na encenação por um trabalho de câmera que busca seu desespero silencioso e por uma composição que faz todos os personagens se posicionarem o apontando indiretamente. O rosto que se mistura no meio de tantos outros, sutilmente se sobressai porque é para ele que se deve olhar, o réu disfarçado de jurado.
Com os demais membros do júri, Eastwood brinca com estereótipos, mesmo que cada um sirva a essa mesma lógica do comum, acabam em momentos específicos destacando suas personalidades como partes da sociedade estadunidense. Enquanto J.K. Simmons e os demais parecem menos multifacetados, servindo a uma comicidade dos próprios padrões desse país e de suas instituições, e como peças que empurram Justin a se movimentar de acordo com como cada um responde aos fatos e indagações do caso, Faith (Toni Collette) ultrapassa seu lugar da representação da personagem política simples e punitivista para também ter o que acredita como certo e errado colocado em crise. A dúvida e a culpa se colocam na balança e jogam a promotora e o jurado em confronto entre eles e com suas próprias decisões, mesmo que o contato efetivo de ambos só aconteça no final. Jurado Nº 2 faz um paralelo de suas jornadas, enquanto a dúvida de Justin vai se tornando uma certeza, e, então, restam as possibilidades de como reagir a isso, ao mesmo tempo Faith vê sua certeza se tornar dúvida e é dado a ela o mesmo espaço de resposta.
O mais fascinante de cada composição é que nada é sublinhado ou destrinchado, tudo é sutilmente apresentado em um jogo de percepções. O objetivo não é compreender o verdadeiro culpado e, até por isso, a investigação que chega a essa conclusão é muito mais interna, do próprio protagonista que acaba facilitando as evidências para que outros cheguem na mesma conclusão. O processo em foco é uma observação psicológica da complexidade humana, em que não há jamais uma única resposta ou alternativa, que compõe uma sociedade formada por milhares de contradições, e é a ruína e manutenção de si mesma. Eastwood chega aos 94 anos mais lúcido do que nunca sobre o mundo que o cerca e afiado para ilustrar e questionar questões que pouco se alteraram com o tempo, mas também atento ao que se modificou. Se o cinema de hoje vê cada vez mais a necessidade de se bastar em si mesmo, mastigar uma resposta concreta e a entregar pronta, Eastwood sabe o poder de abrir uma porta e provocar o pensamento a partir de e além de sua obra.
Nota da crítica: