Em bonito exercício de estilo e forma, Luca Guadagnino conta uma história de solidão e romance a partir das sensações provocadas
Em partes, é como se cada filme de Luca Guadagnino fosse um exercício de estilo e forma totalmente diferente dos anteriores. Ainda que temas se entrelacem aqui e ali, o cineasta encontra sempre novas maneiras de contar suas histórias, seja captando a alma de algo que já existe, mas trazendo para sua própria linguagem, como foi com Suspiria, agora com Queer, entre outros, ou com narrativas originais que se engrandecem mesmo por como as imagens são construídas. O título Queer atravessa décadas, escrito nos anos 50 por William S. Burroughs, publicado somente em 1985 e agora adaptado para o cinema nos minutos finais de 2024, e com esse processo temporal é impossível não pensar em como a própria palavra foi se modificando dentro da sociedade. Inicialmente, o termo era usado de forma pejorativa, e, bem na década em que o romance é publicado, começa a ser conquistado com outro significado por aqueles que eram diminuídos por seu uso. Se hoje é comum e tão parte da comunidade LGBTQ+ que não causa estranhamento ouvir a menção, ainda assim, percebe-se facilmente o peso com que os personagens do longa de Guadagnino soltam a palavra de suas bocas, desde os primeiros minutos. O universo observado no filme, construído de forma fantasiosa mesmo antes de cruzar realmente uma linha surrealista, parece uma outra realidade, uma representação de mundo em que homens homossexuais expatriados no México bebem o dia inteiro, todos os dias, flertam em bares e festas, encontram alguma cumplicidade uns nos outros, mas são, inevitavelmente, solitários e melancólicos. Destaca-se o estilo que Guadagnino emprega para construir esse lugar, pela artificialidade que reforça os cenários de estúdio, pelas luzes, cores, fachadas e por como a fotografia parece limitar o céu a um ponto que fecha seus personagens em uma redoma quadrada de uma realidade fabricada. É em todo esse contexto histórico, estético e social que William Lee (Daniel Craig) é retratado como um homem muito só, buscando nos vícios o encontro de si mesmo, um protagonista sem terra, sem origem, mas com um destino arrebatador à sua frente.
Tudo é atmosfera, a forma como Queer capta uma história e a transforma em sensações a partir de imagens e sons, desde a cidade artificial em que Lee caminha com suas mesmas roupas brancas em um looping das mesmas ações todos os dias, até a trilha sonora bem arquitetada para pontuar momentos, como quando Eugene Allerton (Drew Starkey) é visto pela primeira vez e o tempo desacelera ao som de Come As You Are. O relacionamento entre os dois é pautado por como Allerton é um enigma indecifrável para Lee, que primeiro não sabe se pode investir romanticamente no rapaz, incapaz de detectar sua sexualidade, e posteriormente passa a mendigar seu afeto sem nunca desmistificar seus pensamentos e sentimentos. Então, nesse limbo mexicano em que os homens queer se encontram e vivem todo dia um final de semana, Lee se torna expatriado mais uma vez, além do espaço geográfico que o exclui, é seu próprio corpo e mente que escapam quando seu vício em drogas e bebidas aumenta a aposta e emplaca uma obsessão por um amor, um outro corpo e indivíduo praticamente inacessível. É primeiramente quase inocente e inofensivo como Lee não sabe se Allerton tem interesse ou não por homens, há uma binariedade que o define ou como namorado da mulher com quem sempre joga ou como homossexual, mas a partir do momento em que os dois homens finalmente se tocam, o enigma se torna mais complexo e romanticamente devastador.
Em sua busca desoladora pelo afeto do homem que adora, Lee vê na telepatia a forma de finalmente se comunicar com Allerton. Queer ganha novos espaços, mas mesmo nas florestas da América do Sul, mantém-se fechado em sua dimensão de mundo, como se apenas aquilo que cerca e compete aqueles dois fosse possível e todo o restante pertencesse a uma realidade à parte. É quando os personagens finalmente encontram a ayahuasca que o longa torna sua atmosfera ainda mais surreal, abraçando a ideia da descorporificação como a verdadeira relação, projetando no encontro além dos corpos a comunicação íntima e legítima. Guadagnino explora nas imagens a dinâmica exata dos sentimentos de Lee e Allerton, incapazes de colocar em palavras o que precisam compreender um do outro, um homem implorando por afeto e outro que não consegue o dar, tudo belamente ilustrado por seus movimentos e peles, como se o cineasta filmasse suas almas dançando ao invés de uma ilusão fabricada por câmeras e efeitos. A ideia do amor impossível, das barreiras, de tudo aquilo que poderia ter sido, é comum ao melodrama, mas em Queer, a ideia é exaltar esses elementos por um viés mais fantasioso, sensorial e onírico. Logo, há um close de um gesto muito simples de toque entre dois corpos, usado para recordar uma relação impossível de esquecer, eternamente sentida, mas este é exibido como uma alusão fantasmagórica da dissolução da matéria para encontrar o que está além.
O exercício de estilo de Guadagnino em Queer pode conversar com outros cineasta, os cenários e a encenação a partir deles, principalmente, vão lembrar Wes Anderson, mas sua viagem de sensações é puramente um romance que se liberta das formas tradicionais e encontra-se, como seus personagens, fora do corpo, ou da estrutura realista. Talvez existam poucas coisas mais belas do que esperar que a única forma de se comunicar com alguém que se ama é, na verdade, sem usar as palavras. O cinema também faz muito bonito quando se apega a esse mesmo ideal.
Nota da crítica:
4.5/5
Filme assistido a convite da Mubi. Queer chega aos cinemas brasileiros em 12 de dezembro