Operando entre obras e fragmentos da vida, Susanna Lira elabora um manifesto de cinema, arte e literatura alinhando sua linguagem à de Fernanda Young
É difícil não ser muito pessoal em alguns textos, e falar de Fernanda Young sem me referir ao que essa mulher representou para mim, parece impossível. Todas as sextas eu via seu nome na televisão, depois que conheci sua figura, sabia que ela falava alguma língua parecida com a minha, mesmo que fosse tão mais velha que poderia até ser minha mãe se tivesse tido filhos muito jovem. Eu não sabia de outras mulheres que dialogavam de ser a gente como ela fazia naquela época. Da asma até as tatuagens, sempre tivemos coisas em comum, da menina que eu era até a mulher que de alguma forma, eu já sabia que seria um dia. Quando Fernanda morreu, entrei em algum desespero porque pensei que eu também morreria jovem, mesmo que eu não a conhecesse, nem pessoalmente nem tão bem assim, mas tamanha era a referência que sua imagem e seus posicionamentos operavam em minha vida e na de outras meninas da minha geração. A gente que via o Saia Justa com ela e Rita Lee, e sempre se sentiu diferente, perdeu quase um grupo de amigas, ou mentoras. Tudo que um filme sobre Fernanda Young não poderia ser era careta, e documentários, ainda mais biografias, em formatos pouco criativos, com entrevistas desinteressantes, temos aos montes, mas felizmente Susanna Lira sabe falar na linguagem que Fernanda usava para se comunicar com o mundo e cria muito mais um manifesto que une as artes do cinema e da literatura, para montar poeticamente as muitas imagens dessa grande mulher.
Não é exatamente como se Susanna entregasse a Fernanda a voz em seu filme, ainda que a narradora muitas vezes seja a protagonista, e não existam interferências de equipe nem entrevistas montadas para o documentário, entre as costuras de seus livros, imagens de arquivo e áudios recortados, é possível sentir a presença de algo que une tudo em um propósito, que gerencia os fragmentos para que se elaborem em uma linguagem que combine com Fernanda, linear mas também livre. Então, é como se a figura principal aqui também tivesse poder para falar de si, mas com apoio da diretora e sua equipe, como se sua presença fosse indissociável da produção de uma obra que fala de sua vida. É muito claro que a abordagem aqui, além de ser muito mais poesia e homenagem do que documentário biográfico, vem de um lugar de admiração. Fernanda estampa a maioria das cenas, seja por sua voz ou por seu rosto, seus muitos cabelos e corpos, mas principalmente, por sua personalidade única que a fez ser tão grandiosa no imaginário de tantas pessoas. Há muito amor em Fernanda Young - Foge-me ao Controle, esse que ela tanto mencionava e permeia seu filme, que a trata com gentileza sempre, buscando acima de tudo a mulher, o ser humano além das tantas obras que escreveu.
A autenticidade dessa narrativa transborda a complexidade que era Fernanda, ainda que linear, também muda de assunto e costura aqui e ali pontos fora da curva, lida com sua forma de enxergar as coisas, com suas doenças respiratórias, dislexia, maternidade, intensidade emocional e casamento por meio das próprias palavras da escritora. O longa opera quase como um artesão criando uma colagem, Fernanda deixou todas as ferramentas, mas foi preciso a compreender primeiro para montar as peças de forma a dar conta de quem ela foi, e ainda é em algum imaginário coletivo. Para quem conheceu, mesmo que pouco, o legado dessa artista, é uma emocionante homenagem e para aqueles que pouco ou nada sabiam sobre, é um convite a adentrar esse outro mundo, de alguém que sempre questionou e desbravou as barreiras de ser mulher na nossa sociedade.
Nota da crítica:
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