Saulė Bliuvaitė explora o contraste entre a vida duramente precária da realidade e a esterilidade perigosa da promessa, usando corpos jovens como centro de sua crítica
Os filmes da Lituânia não costumam chegar aos montes por aqui em festivais, no circuito comercial nem preciso dizer, e quando um longa de estreia de uma cineasta deste país vence o maior prêmio de Locarno, o Leopardo de Ouro, certamente chama atenção. Mas Akiplėša (Toxic), já havia entrado na minha lista muito antes por uma única imagem de divulgação, que agora também ilustra diversas notícias e essa crítica. Um grupo de garotas muito jovens, pálidas e parecidas, sentadas lado a lado com uma parede de cor sem graça ao fundo, ressaltando a frieza e seus olhos levemente apavorados. A tal cena é muito mais impactante, obviamente, dentro do filme, ambientada por um som assustador, de uma fita métrica sendo usada para tirar medidas dos corpos dessas meninas de 13 ou 14 anos, já muito magras. Entre algumas escolhas comuns de Saulė Bliuvaitė, que conversam com uma estética de festival e coming of age, há também essas muito interessantes que demonstram um domínio de direção já tão cedo em sua carreira. Ela é capaz de construir a partir de suas imagens uma crítica efetiva, coordenando esses corpos jovens no ambiente ameaçador da escola de modelos e criando encenações criativas com poucos recursos. Cenas como essa em que o som da fita se une aos olhos cheios de medo e quase nada é dito, ou quando se colocam em uma fila que remete ao verme dentro de Kristina, usado para perder peso e, novamente, diálogos não desnecessários para pontuar a dureza do que Bliuvaitė pretende. Entre o ambiente externo, das ruas vazias e sujas da cidade industrial em que vivem, suas casas precárias de pouca capacidade e nenhum apoio familiar, e os espaços estéreis e frios da escola de modelo, Toxic contrasta a realidade estagnada, sem chances de futuro, dessa juventude, com uma promessa vazia e perigosa que se vende como a única opção de uma vida melhor.
A pobreza ressaltada nos lares e nas ruas parece não um obstáculo, mas um conformismo com o estado das coisas. Os cartazes da chamada para novas modelos não vem exatamente como um brilho de esperança, são até caçoados pelos jovens, mas entre sair todos os dias tentando comprar bebidas e vagar pelos espaços vazios ou ficar em casa em ambientes bagunçados com adultos tentando viver suas próprias vidas, o curso parece uma ocupação mais interessante com alguma chance de ganhar dinheiro. Maria é a estrangeira desse pequeno lugar e só é aceita pelos grupos quando faz amizade com Kristina, com uma pequena deficiência que a faz mancar, a ideia de ser uma modelo parece estranha, mas assegurada a todo momento pela líder da seleção. Por mais estranho e misterioso que tudo que envolva esse lugar possa parecer, os adultos estão sempre distantes e as meninas ainda tão jovens à própria sorte. Para emagrecer e terem os corpos perfeitos, as cenas começam a explorar primeiro algo menos tóxico, o algodão, para passar aos poucos para drogas, anorexia e bulimia, até uma intervenção mais perigosa por parte de Kristina. Seus corpos já muito magros e negligenciados enfrentam diversas tentativas de diminuírem ainda mais as medidas, sempre na sujeira do mundo externo, para depois serem avaliados no ambiente gelado, limpo e ordenado da escola de modelos. Lá elas são padronizadas, com roupas pretas e movimentos parecidos, mas estranhamente Maria se destaca por não se encaixar e, ainda assim, ter seus custos pagos pela coordenação. A clara noção de um perigo, um golpe para traficar sexualmente essas meninas a outros países não é lidada como algo fora do radar de todos, mas há sempre esse conformismo com as piores coisas como parte comum de seus destinos.
A forma como Toxic retrata suas vidas é um beco sem saída, de negligência familiar, pobreza e poucas opções, tornando comum a prostituição como forma de conseguir dinheiro, o uso de substâncias potencialmente letais para emagrecer, e abusos, riscos e nenhum acolhimento ou vislumbre de futuro fazem parte de seus dias. Maria e Kristina encontram uma na outra, então, algum apoio, mesmo que conscientes de suas limitações. Enquanto cada escolha de ambas na tentativa de sair desse lugar pela profissão de modelo as leva a caminhos mais insalubres e tóxicos, ainda vê-se medo em seus olhos, apreensão e abandono, algo que só é partilhado ao ponto em que ganham confiança uma na outra, e, assim, dividem suas emoções também com a encenação do filme. Todos os jovens retratados no longa reconhecem suas realidades e vivem na corda bamba do perigo por ser rotineiro a eles, mas é a proximidade criada por Saulė Bliuvaitė com suas duas personagens principais que abre suas vulnerabilidades e remove as máscaras, principalmente de Kristina, as levando ao retrato de meninas desamparadas e frágeis que sempre foram com seus apenas 13 anos.
Toxic é permeado pela tristeza e falta de horizontes, jogando essas jovens em uma solidão arriscada, observando seus amadurecimentos forçados em cascas duras que protegem seus interiores ainda tão inocentes. Assim, faz sua crítica utilizando a hostilidade do mundo para com os corpos femininos como meio para esse alerta a como criminosos se aproveitam de meninas em situações de vulnerabilidade e pobreza. Há um único momento em que uma família aparece para brigar por sua filha, que já está longe, mas suas palavras deixam claro que ignoraram qualquer sinal alarmante pela possibilidade da menina ganhar algum dinheiro. É um mundo de poucas portas e saídas, como se a pequena cidade fosse um buraco no meio de tudo, e o que Bliuvaitė desenha é a realidade crua e dura de viver sem perspectivas, ainda pior quando se é mulher.
Nota da crítica:
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