Por uma perspectiva doce e inocente, Paz Vega retrata o amadurecimento precoce a partir das violências que se tornam parte do cotidiano
Em algum lugar da Espanha, em um verão dos anos 80, Rita iguala seu ponto de vista ao de uma menina de 7 anos, doce, de olhos arregalados e pronta para absorver tudo que o mundo lhe apresenta. A câmera quase sempre na altura da cintura dos adultos nos coloca junto à pequena Rita (Sofía Allepuz) para compreender o meio em que ela está inserida, uma família da classe trabalhadora, humilde, com um irmão pequeno, uma mãe dedicada ao lar e um pai violento que entra e sai de casa de acordo com sua jornada como motorista. Assim, na mesma medida em que existe a doçura infantil de encontrar beleza em tudo, nas escadas do prédio em que suas pequenas pernas descem e sobem com cuidado para não cair, no tom quente dos dias que dão saudade da praia, na vizinha que ensina a dançar e nos vestidos das revistas, também existe a dor de observar a mãe (Paz Vega) sendo um retrato das opressões femininas, atrelada a um casamento infeliz pela dependência financeira, constantemente agredida verbalmente pelo marido e sendo bombardeada por comentários externos pelo preconceito da época com o divórcio. Nada passa despercebido por Rita, seus olhos e sua mente captam cada coisinha, mesmo que ainda não possa compreender todas. As cenas se dedicam então a mostrar como mesmo tão nova, a menina já assume responsabilidades como forma de lidar com tudo que está absorvendo ao seu redor, é atenta aos horários, preocupada com as tarefas da mãe, tenta se virar sozinha, ajudar na casa e cuidar do irmão. Com só 7 anos, o contraste entre ela e Lolo é claro, o menino um pouco mais jovem é frágil e ainda incapaz de fazer muitas coisas sozinho, sendo constantemente apoiado pela irmã ou por algum adulto, enquanto Rita navega a vida se forçando, ou sendo forçada, a ser seu próprio apoio.
Ao mesmo tempo em que o longa de Paz Vega capta a nostalgia dos filmes coming of age de verão, das férias que marcam etapas transitórias na vida, está mais próximo de O Pântano, ao focar em uma criança que praticamente segue independente sem adultos, e deixa a doçura dessa atmosfera preparar terreno para tudo que há de mais doloroso em sua proposta. É mais pessimista e voltado a um impacto violento do que essa luz quente e as brincadeiras inocentes de Rita indicam. Vega manipula então o uso do MacGuffin ao apresentar uma pequena faca que conecta sua protagonista ao filho da mulher divorciada do bairro. A narrativa da menina compreendendo o ser mulher a partir das vivências terríveis da mãe, e que faz ou fez parte da vida de tantas crianças no mundo real, é a linha principal que se traça enquanto a faca e a amizade com o garoto existem em um paralelo constantemente lembrado. Além do estigma que a família do vizinho representa, diretamente conectado à situação da mãe de Rita, cresce entre as duas crianças algum sentimento mais doce do que tudo que ocorre na casa da menina. Sua mente sonhadora de apenas 7 anos vai criando sonhos, brincadeiras e momentos que são lembretes do filme de que no fim, Rita é apenas uma criança, forçada a amadurecer, sempre vista sendo responsável demais para a idade, mas encontrando respiros para ser o que deveria ser. Enquanto a faca é lembrada vez ou outra, e todo um contexto de tempo e sociedade vai sendo feito por televisores e conversas paralelas, é praticamente certo determinar a tragédia que cruzará o objeto marcante ao destino final da família, mas a manipulação desse dispositivo dá contornos interessantes a essa expectativa.
Acima de tudo, Rita quer gerar o impacto que julga necessário para dar importância a seu tema. A inocência corrompida por uma sociedade machista, a violência doméstica e a figura feminina diminuída atravessando gerações pelo trauma, nenhuma doçura que exista nos olhos da pequena menina para enxergar o universo seriam suficientes para aguentar o tranco do que Paz Vega pretende para seu destino. Então, ela afasta a menina dessa dor, a remove usando seu dispositivo para viver mais um momento inocente e infantil, de afeto na fuga da brutalidade que acontece em sua casa. A expectativa que se constrói no espectador, de que de alguma forma Rita usará sua responsabilidade e maturidade precoce para intervir nos horrores que sua mãe sofre é mais um peso do mundo nos ombros da pequena garota, assim, sendo a tragédia inevitável, Vega a poupa de viver de perto o trauma, de tentar mais uma vez ser adulta e de se responsabilizar pelo cuidado do irmão, para poder sonhar uma última vez.
Nota da crítica:
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