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Foto do escritorRaissa Ferreira

Locarno 2024 | Salve Maria

Mar Coll transforma a crise da maternidade em um horror que encontra identificação na releitura da tragédia clássica 

Salve Maria Mar Coll

Na primeira cena de Salve Maria, o plano fixo no corredor pequeno e escuro do apartamento parece esconder uma assombração. Talvez de fato exista um fantasma ali, a própria Maria (Laura Weissmahr) vagando com os olhos escurecidos e fundos, cabelos bagunçados com a raiz bastante aparente e a coluna curvada pelo cansaço. Enquanto o bebê chora, o marido anda com disposição pelo espaço, sempre pronto para julgar a esposa e dar suas opiniões. O peso da maternidade é retratado aqui muito pautado na atuação da protagonista e seu semblante drenado, sempre em oposição ao homem que divide a vida com ela. Quando a notícia de uma mãe que matou os dois filhos e tentou se suicidar chegar até Maria, seu rosto congela aterrorizado, não se sabe se por medo do que aconteceu ou do que pode acontecer. As referências são óbvias, Medeia matou os filhos na tragédia grega e até mesmo o nome da personagem central se liga à mãe mais famosa da religião católica, mas as mulheres deste filme servem a questões muito distintas. A obsessão de Maria pelo crime vem na verdade de uma identificação, de encontrar sentido na escuridão que vem tomando conta de sua mente, existe alguém que cruzou essa linha e realmente agiu, enquanto ela permanece apenas assombrada por pensamentos obscuros. Diferente da tragédia de Eurípides, Alice não matou os filhos para se vingar de um homem, seus motivos verdadeiros nunca são destrinchados, mas a solidão parece ser um grande fator, assim, Mar Coll não retrata suas personagens como monstros cruéis e vingativos motivados pelas ações masculinas e sim pessoas isoladas, sem apoio e perturbadas pela pressão que sua condição estabelece. 

 

Maria busca constantemente ajuda do parceiro, que reclama ao atender suas ligações e cobra mais ainda de sua posição de mãe. A solidão da mulher é ressaltada mesmo quando existe um grande grupo ao seu redor, como se sua energia de viver tivesse acabado e suas súplicas por uma divisão mais justa dentro de casa a levassem ainda mais perto dessa monstruosidade que a fascina. Explorando a mente de sua protagonista, Salve Maria joga entre o que a sociedade enxerga como uma criatura maligna, a mãe que rejeita os filhos, incapaz de demonstrar amor e carinho, e o que gera essas figuras isoladas e enlouquecidas, mas humanas. Após um longo dia sozinha com o bebê, lidando com todas suas questões e extremamente cansada, Maria é cobrada de dizer que o ama, enquanto o marido fica apenas com a parte mais divertida, deixa o filho chorando na cadeirinha e usa o celular. Um paralelo simples, comum na realidade, que vai trabalhando essa construção de Mar Coll do homem como parte pouco participativa, responsável pela sobrecarga da mulher. A consequência é um afastamento cada vez maior de Maria com a criança, pesadelos em que ela vê seu pequeno corpo cair e bater a cabeça, ou ela mesma o arremessa. Para seu parceiro é impossível compreender tudo que ela sente, cria-se uma barreira de comunicação e empatia que o transforma cada vez mais em um quase vilão. Ele representa um julgamento comum, de como as mulheres podem ser histéricas e monstruosas, sem apresentar nenhuma proximidade com o que ela está passando, sem pensar em se afastar de suas atividades para dividir o fardo com ela. 


A coleção de jornais de Maria também aponta esse olhar coletivo para as mães, com apelidos e incitações de ódio, pouco sabe-se de qualquer mulher que cometeu um crime antes da escuridão tomar conta de suas mentes, só são vistas quando perdem a cabeça, só são enxergadas enquanto monstros, nunca como seres humanos que precisam de ajuda. A Medeia de Mar Coll é uma figura misteriosa e sem rosto que brinca com o imaginário de Maria, enquanto a pessoa que as liga, Ana, pontua diversas vezes como ela mesma pensa muito em coisas trágicas, como a maternidade é sufocante e solitária. Assim, a assassina cruel fica nos jornais enquanto entre as mulheres ela se torna um enigma a ser decifrado, como uma luz brilhante que atrai Maria a dançar em cima da fina linha que a separa da escuridão. 


Seu desabafo final com o marido é a quebra desse flerte com a monstruosidade, o que poderia ser um desfecho perfeito, ao colocar em palavras algo que é tão difícil de dizer pelo julgamento de quem escuta. Uma mãe ousar falar que se arrepende de ter parido e que pensa constantemente na morte da criança é uma afronta para a sociedade, não um pedido de socorro, portanto é de muita coragem de Maria e seria também do filme, finalizar sua jornada dessa forma. No entanto, há uma tendência de obras que abordam essa temática - cada vez mais comuns, inclusive com um filme primo também em Locarno, mas menos sombrio -, de tentarem alguma conciliação para essas mulheres. Salve Maria vê em seu epílogo a chance de a mostrar como humana, gentil com o bebê, feliz, dançando, bebendo e vivendo a vida com mais leveza, sendo que é justamente tudo que ocorre com ela durante o longa que ressalta sua humanidade. A escolha de Mar Coll de apresentar a paz e remover a obscuridade, jogando no morno a construção de horror que precede o final, parece ir mais de encontro ao medo do julgamento, do que de bancar a monstruosidade como parte da mulher e da mãe, mas não perde o quão interessante é tudo que vem antes.


 

Nota da crítica:

3,5/5


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