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Foto do escritorRaissa Ferreira

Mami Wata (2023) | Mostra de Cinemas Africanos

Colocando as crenças espirituais em crise, o conto de C.J. ‘Fiery’ Obasi usa a fantasia do cinema para exaltar a cultura e os indivíduos, construindo um olhar próprio



Na abertura da Mostra de Cinemas Africanos, Lílis Soares, a brasileira responsável pela direção de fotografia de Mami Wata (e premiada em Sundance) fala sobre a necessidade de conhecermos a pluralidade dos cinemas africanos e como sua fotografia no filme é política. Logo após, adentramos o longa de C.J. ‘Fiery’ Obasi e já nos primeiros segundos é possível compreender a fala de Lílis sobre sua fotografia, mas também, como o casamento desse visual com o desenho de som torna essa obra ainda mais poderosa. É bem verdade que o público em geral, cinéfilo engajado ou não, ainda tem muito o que explorar no cinema do continente mãe, e a oportunidade de assistir a esses trabalhos na tela grande, com uma boa estrutura de som, eleva essa experiência certamente. Em Mami Wata, é um privilégio ser hipnotizado por suas imagens em preto e branco com forte contraste e o som das ondas do mar que tomam conta da sala. Aqui, a maquiagem, o cabelo, os acessórios e as roupas se destacam, quase pulam da tela pelo contraste, revelando um interesse em exaltar as peças que formam essa cultura tradicional, que já existia muito antes dos estragos de uma colonização. As personagens sempre em foco, em planos mais fechados, são mais importantes do que o que está ao redor delas, a não ser que estejam no mar, lugar em que a câmera abre seus planos e permite essa comunhão em tela, fortemente abraçada pelo som. O ideal de progresso de alguns vai em embate direto com as tradições de fé que entram em crise, mas C.J. ‘Fiery’ Obasi deixa claro por meio dessa dualidade o que pretende resgatar e mostrar ao mundo com seu trabalho.


Cinema é parte da cultura de um povo, muitas vezes uma ferramenta para conhecermos outros lugares, costumes e vivências. Quando pensamos numa arte dominada por certa indústria, é inevitável que muitos países sejam afetados por influências externas e acabem caindo no uso de linguagens hollywoodianas, acontece no Brasil, na Coreia do Sul e em todos os cantos, constantemente sem se apropriar das referências para criar suas próprias histórias. É interessante, portanto, como Mami Wata nasce nesse mundo já tomado de anos de referências cinematográficas, mas busca sua identidade própria, um olhar da Nigéria com toda sua bagagem afetada por agentes externos, mas com suas raízes ainda vivas. O pequeno vilarejo de Iyi é abalado justamente pela chegada de um homem de fora, com outras ideologias e vivências. O filme abraça essa ideia que toma conta da política de diversos países, de como um meio pode sofrer com as interferências de fora, para mostrar seu próprio olhar de uma arte monopolizada por outros, em linguagem e em reconhecimento.



Para retratar as tradições de uma crença que entra em crise, o longa trabalha uma ambientação que prioriza os sons da água e das conchas, de uma natureza que também é raiz da fé daquela vila, bem como a fotografia retira quase completamente a profundidade das cenas para colocar em destaque cada pessoa, seus rostos e suas características. A energia feminina, tão importante para essa narrativa, é trabalhada aqui exaltando as mulheres que fazem parte dessa resistência das tradições de Iyi, a mãe, mediadora espiritual da vila, e as filhas, descendentes dessa ligação com Mami Wata, sempre em closes, com suas vestimentas evidenciadas, seus olhos poderosos preenchendo a tela e sua maquiagem quase tridimensional. A fotografia de Lílis busca refletir os detalhes brancos de forma a criar esse realce que faz os pontos pintados na pele dessas mulheres retintas saltarem na tela. Mas nos momentos em que estão no mar ou próximas dele, a luz clara preenche tudo, dando profundidade e criando essa comunhão entre elas e a casa de Mami Wata. Se o progresso é enxergar lá na frente, o filme deixa claro por sua linguagem que só há como ver o horizonte quando se voltam para as águas. Não há um bom caminho para o futuro que não esteja conciliado com o que formou aquele povo.


A interferência do homem de fora que bagunça tudo e reforça a falta de fé nas crenças que sempre guiaram o povo daquela vila traz a violência e as armas de fogo, sempre com altos sons um tanto abafados dos tiros, que parecem pontuar aquela ferramenta como algo estrangeiro, estranho naquele meio, que não se encaixa com o todo. Assim, a unidade estilística do longa vai sempre de encontro à tradição, colocando essa busca por um certo interesse de progresso como uma inimiga. E se é sempre dito por tantos personagens como se pode acreditar em Mami Wata sem nunca a ter visto, C.J. ‘Fiery’ Obasi não pretende criar mistério nem deixar a dúvida cética tomar conta. A fantasia desse folclore é clara e escolher o que mostrar aqui é também uma escolha política.


Filme assistido como parte da cobertura de imprensa da Mostra de Cinemas Africanos

Mami Wata faz parte da edição de 2023 da Mostra, com programação em São Paulo de 5 a 13 de Setembro e em Salvador de 13 a 18 de Setembro


Confira a programação completa em: https://mostradecinemasafricanos.com/

E acompanhe a cobertura completa clicando aqui


 

Nota da crítica:

3,5/5




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