Chocando o amor vivido em cumplicidade com um mundo de tradições em colapso, Ramata-Toulaye Sy retrata o medo e a coragem que movem um casal no meio do caos
O cinema tem suas ironias, funciona com uma mística própria que ri do tempo. Banel e Adama fez sua estreia há mais de um ano em Cannes e hoje chega a uma São Paulo em caos climático, quando esperamos tanto por uma chuva que purifique o ar e amenize as temperaturas quanto os moradores do vilarejo no filme. Antes da atmosfera quente e a areia se tornarem sufocantes, no entanto, a fotografia belíssima de Amine Berrada ressalta um calor diferente, aquele que vem da cumplicidade entre Banel e Adama, que torna cada momento entre o casal um afeto que os integra ao espaço ao redor. Seja trabalhando juntos cavando a areia, o rosto iluminado de Banel quando vê o jovem marido se aproximar, suas vestes contrastantes nas cores ou as cenas dentro de casa. Ainda que os planos mais abertos aconteçam em menor escala, existe uma conexão que liga os closes nos personagens às tomadas do céu, da areia, do vilarejo e da natureza geral do local. A relação com o espaço é fundamental, ele passa a colapsar de forma natural, pelo clima, e também de forma figurativa, pelo comportamento das pessoas que ali vivem. Então, gradualmente o calor emocional que era transmitido na fotografia e nos rostos de Banel e Adama se tornam um ar pesado, escaldante e opressivo. O casal que divide uma intimidade única, sempre em sintonia como dois grandes amigos que se apaixonaram, parece ter nascido descolado daquela realidade bastante tradicional, de uma religião que pede certos costumes e impõe comportamentos, como casamentos arranjados. É como se ambos fossem destinados a uma liberdade além disso, mas são fadados às tradições, por sangue e expectativas externas. Ramata-Toulaye Sy choca, então, seus personagens para observar como viverão esse amor apesar da natureza, do deserto e das pessoas. Mas se Adama passa a ser movido pelo medo, Banel é pela coragem, e se recusa a viver uma vida que lhe é imposta.
Ainda que exista alguma tensão criada pela morte do primeiro marido de Banel, o longa não faz nenhuma questão de esconder como a mulher sempre foi capaz de resolver suas próprias questões. Acima de tudo, é a jovem a protagonista dessa história, destoante de sua comunidade, lutando contra o que é esperado dela enquanto esposa e mulher, a figura de Banel explora uma complexidade da devoção amorosa que não significa o extermínio da individualidade. Ela é iluminada pela presença de Adama como uma adolescente com seu primeiro amor, mas é firme em seus posicionamentos, com o que quer para o futuro e como não se moldará ao que esperam do marido. Já Adama, muito jovem, é tão apaixonado quanto, mas suscetível à pressão que o vilarejo coloca em suas obrigações. A recusa à linhagem de sangue e poder no local se alinha a uma maldição climática e espiritual, a chuva não vem, o gado passa a morrer e aos poucos, o homem sucumbe ao medo e se adapta ao que é esperado de seu papel. O calor e a alegria partilhados nas cenas do casal passa a se tornar mais sombrio, os tons quentes perdem a saturação aos poucos e a encenação passa a destacar o espaço que cresce entre os dois. Banel é vista muito mais sozinha, em embate com o espaço e as outras pessoas, com raiva da natureza, descontando nos animais sua infelicidade com o casamento. Em tempos de caos, o mundo que desaba ao redor de Banel e Adama afeta diretamente a relação, entra na casa e nas mentes, corroi a cumplicidade inocente que outrora era vista.
É como se um amadurecimento forçado ocorresse, removendo o havia de mais primordial no amor dos dois, destacando o abismo que os separa. Banel e Adama chama a atenção por suas cenas, a fotografia não é apenas bonita, é também repleta de significado com a narrativa do filme. Seu uso é fundamental para integrar o que acontece com o casal com a situação externa fora de seus controles, chegando ao ápice de engolir a protagonista em uma tempestade de areia. A coragem de Banel a impede de ceder ao destino imposto, ela faz sua própria história, portanto não é apenas poético que ela se entregue ao meio, como também consistente com toda a trajetória escrita para a personagem. O otimismo amoroso que começa jogando o espectador nessa paixão jovem e rara se amarra a um pessimismo dilacerante, mas mesmo que seja impossível um amor sobreviver em meio ao caos, ainda é mais potente se manter firme enquanto mulher, do que se entregar a uma vida que não escolheu.
Nota da crítica:
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