Documentário de Naledi Bogacwi tem fôlego apesar da estrutura protocolar, por sua vontade de investigar e contar a história da censura no governo do apartheid na África do Sul
Parte importante da programação da Mostra de Cinemas Africanos deste ano é uma seleção de filmes que destacam os 30 anos do fim do apartheid, um deles é Banido (Banned), da cineasta Naledi Bogacwi, que faz sua estreia na direção de longas com este documentário. É notável que este é o ínicio de sua jornada, por como o ritmo é instável e a encenação é simples, mas é sua vontade de realmente contar essa história que ultrapassa as dificuldades e consegue evidenciar uma relação com o material e as entrevistas, de modo a chegar a um resultado até consistente. Eu nunca tinha ouvido falar em Joe Bullet até chegar a esse filme, assim como imagino que muitas pessoas não tenham. Explorar a história da censura que o cinema na África do Sul sofreu por meio de uma obra interessante como essa é certamente um dos acertos do documentário. Naledi inicia mergulhando nesse longa de ação e todas as pessoas com quem conversou sobre seu processo de criação e banimento para instigar o espectador a adentrar em um mundo mais denso. A partir de então, as entrevistas aumentam e se somam a algumas poucas imagens de arquivo que ajudam a explicar como não apenas o cinema, mas também a música e o teatro, foram afetados pelo governo do apartheid, assim como as próprias pessoas em suas vidas e rotinas diárias.
Com uma estrutura bem simples, fundos neutros e coloridos que posicionam seus entrevistados frente a câmera, por vezes alterando o plano para o perfil dessas pessoas, uma legenda de identificação e iluminação chapada, Naledi alterna de forma bastante ágil o que cada um tem a dizer. Não é visível apenas como ela tem sede de contar essa história mas como essas pessoas escolhidas para falarem também tem tanta vontade de partilhar suas memórias e pensamentos. É comum que documentários mais amadores e protocolares percam muito tempo e espaço com pessoas que pouco agregam ao tema ou, pior ainda, aqueles que desperdiçam o potencial de grandes figuras e o que tem a dizer. Banido é muito certeiro nesse sentido, une pessoas que agregam ao que se quer mostrar e trazem falas bem íntimas de suas relações com a censura, o governo e as obras citadas. Nesse caminho que começa e termina em Joe Bullet, Naledi amarra o gancho que instiga ao introduzir a obra e sua relevância, o que seria na visão de seu criador um tipo de James Bond negro, um ideal de héroi e sucesso, e finaliza voltando a ela para contar como tantas décadas depois ela sobreviveu e voltou a ser exibida. No meio de tudo isso, as entrevistas narram do começo ao fim como era viver nesse sistema de censura, destacando a vivência de pessoas negras e brancas, artistas e pessoas do meio que sobreviveram, protestaram, desafiaram ou simplesmente observaram o ápice do governo do apartheid na África do Sul.
Entre as entrevistas estão conversas bem casuais que relatam como gírias e músicas burlavam a censura por falarem de formas que os brancos não entenderiam, como pessoas negras eram retratadas na arte, as dores de ver colegas sendo mortos pelo governo sistematicamente e de escapar desses ataques e ameaças, os enfrentamentos ao sistema para tentar continuar trabalhando e existindo e as corrupções que se aproveitam de brechas em leis de incentivo. O panorama bastante completo que Banido passa é também uma história do próprio cinema na África do Sul e da televisão, primeiramente proibida e depois usada como instrumento político de comunicação. Não falando somente dos desafios de fazer cinema por lá, principalmente no que chamam de “black films”, mas também como obras de Sidney Poitier, 007 e outras, eram proibidas de serem exibidas pelas regras da época. Em sua espécie de código hays, com limitações ainda piores, era quase impossível fazer filmes, músicas e peças teatrais no país, sem bater de frente com a política, assim como era muito difícil trazer outras de fora.
A montagem que por vezes bombardeia com entrevistas sem respiro e em outros momentos permite falas mais longas sem o apoio de imagens de arquivo para alternar a visão, demonstra uma forma enfraquecida de contar a história visualmente, bem como a trilha sonora é bastante fora de tom, sendo muito mais agradável quando remove-se a música de fundo. Mas esses detalhes também dizem muito sobre o desejo de Naledi de fazer este documentário, de fazer um cinema que espalhe algo importante ao mundo, e de denunciar uma época terrível que, embora tenha terminado há 30 anos, ainda deixe tantas cicatrizes. Filmes como este são consequências e respostas a isso e o interesse da cineasta é o que faz a obra ter fôlego e superar suas dificuldades. O que é mais importante, um material rico e instigante, Banido tem de sobra, tanto para despertar a vontade de assistir a Joe Bullet - o que espero que seja possível um dia - quanto para conhecer mais a fundo, de forma pessoal por essas entrevistas tão próximas, um pedaço importante e lamentável da história.
Nota da crítica:
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