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Mostra de Cinemas Africanos | Depois das Longas Chuvas (2023)

Usando o olhar doce e infantil para encarar o mundo, filme de Damien Hauser reflete costumes e tradições com imaginação e criatividade

Depois das Longas Chuvas

Não é surpresa que Depois das Longas Chuvas seja uma coprodução entre Quênia e Suíça, já que muitos filmes africanos contam com diretores baseados na europa ou produções de fora, mas é, de alguma forma, engraçado descobrir que Damien Hauser é o criador desse longa que parece tão próprio de sua protagonista. Aisha, uma menina de 11 anos, enxerga o mundo exatamente como ele é retratado no filme. Hauser, um cineasta que nasceu em Zurique, é capaz de usar a linguagem para que o pequeno vilarejo e todas as pessoas estejam no mesmo tom, como se tirados da imaginação de uma criança bem inteligente e criativa. Uma simples pergunta instiga sua jornada, a reflexão sobre o que quer ser quando crescer. A resposta, no entanto, vem com barreiras. No ano passado, os filmes exibidos na Mostra de Cinemas Africanos estavam entre 2021 e 2023 e era possível notar em sua maioria uma temática que os ligava, a exaltação da cultura tradicional como forma de preservar sociedades em risco pela grande perda de interesse dos jovens, focados em mudar para a Europa. Agora, a seleção que vem com obras de 2023 e 2024 parece enxergar nos costumes antigos, e mais tradicionais, uma espécie de poda a seus objetivos. Um casamento arranjado ao qual se escapa, os papeis de gênero que impõe o destino, conflitos e preconceitos antigos que não cabem mais em um mundo atual. É o caso de como o professor do vilarejo diz para Aisha sonhar com algo mais possível e como todos ao seu redor esperam dela tarefas condizentes com seu gênero e classe social. O lugar onde vive geograficamente se torna uma barreira invisível que diz até onde a menina pode ir, mas Depois das Longas Chuvas usa o olhar doce e criativo de uma criança bastante astuta para ultrapassar essas limitações muito adultas.


Inserindo pequenas frases de efeito em desenhos que acompanham a jornada de Aisha e cenas que criam alusões bem infantis aos seus momentos, como o rio vermelho que indica seu amadurecimento feminino, Hauser joga nessa linguagem que lhe permite ser ingênuo e óbvio sem soar totalmente amador. A entrega do controle desse universo à garota fortalece as atuações claramente iniciantes, o que também corrobora seu incentivo aos sonhos, e dá brilho à fantasia. As emoções trabalhadas nesse campo infantil também se potencializam por mais simples que possam parecer. Nesse lugar pequeno, de possibilidades limitadas, Aisha não somente pensa em um futuro que ignora essas barreiras como também espera mais de suas relações. Tudo é muito prático, estudar, buscar a água, cuidar da casa e uns dos outros, não fazer perguntas e terminar tarefas. Mães demonstram amor mantendo os filhos vivos, bem cuidados e alimentados, mas Aisha quer ouvir um “eu te amo”. Mais do que isso, quer ultrapassar essa praticidade e compreender de fato as emoções e relações. Ela escolhe exatamente os caminhos que uma mente infantil curiosa escolheria, totalmente apoiada por uma encenação que não abandona sua forma de ver e encarar tudo, mas é certamente a criança mais brilhante de toda a vila, sabe como contornar os “nãos” que recebe.


Não é uma simples mensagem motivacional que Depois das Longas Chuvas pretende, de que é possível ir atrás de seus sonhos e pronto, acabou. Usando Aisha para guiar o espectador, essa ideia é colocada nos termos de que é preciso sonhar, é preciso ignorar as barreiras que são colocadas, não porque tudo é possível se você se esforçar, porque claramente, mesmo em uma visão infantil, a vida não é esse parquinho todo, mas porque imaginar, almejar e ultrapassar limitações, são as únicas formas de não se contentar com destinos predeterminados. Caso Aisha simplesmente aceitasse quando seu professor lhe disse que deveria escolher um sonho mais possível, ou quando a impediram de aprender a pescar, tudo seria diferente e menos divertido, assim como Hassan não a ensinaria a navegar e capturar peixes se mantivesse sua mente nas tradições de passar o ofício apenas a um homem. Uma dose de realidade até vai bem, quando a Aisha mais velha diz que não desistiu da atuação, embora ainda trabalhe em hoteis, mas é o fato de ensinar, passar para a nova geração a possibilidade de sonhar, que mantém essa linguagem doce viva. No mundo dela, este que usa o cinema para materializar as mentes criativas, não importa sua idade, peixes gigantes e dourados existem, então sempre vale a pena continuar imaginando além das limitações chatas do mundo real. 



 

Nota da crítica:

3/5


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