Reflexões sobre as noções de tempo no cinema na era dos streamings, a partir das mais de três horas daquele que foi eleito o melhor filme de todos os tempos
Em 2022, pela primeira vez na história da lista publicada desde 1952, um filme dirigido por uma mulher (e com uma equipe 80% feminina) liderava a Sight and Sound. Jeanne Dielman
foi escolhido o melhor filme de todos os tempos numa seleção que alternava sua liderança na maioria dos anos entre Cidadão Kane (Orson Welles, 1941) e Um Corpo que Cai (Alfred Hitchcock, 1958), numa mudança radical não apenas pela direção e equipe feminina, mas também pelo alto teor feminista da obra e sua longa duração. Com 202 minutos, o filme de 1975 de Chantal Akerman pode não apenas parecer longo, como extremamente lento para alguns. Nunca estivemos tão distraídos como atualmente e, ainda que vivamos na era dos vídeos curtos e das maratonas de séries em streamings, um filme com mais de 3 horas que observa cada minuto das tarefas mais simples do cotidiano de uma mulher conseguiu espaço de destaque. Parece que foi ontem que acontecia mais um daqueles debates rasos na internet quando um famoso crítico de cinema brasileiro manifestou suas ideias para uma forma correta de assistir a O Irlandês (Martin Scorsese, 2019), filme com apenas 7 minutos a mais do que Jeanne Dielman. Com o avanço dos streamings e das produções pensadas para consumo rápido, nasce e amadurece um espectador impaciente que cada vez mais precisa de estímulos para prender sua atenção, impossibilitando assistir a algo que dure tantas horas sem um grande ponto de virada e sem a possibilidade de dissipar a atenção em outros meios. No caminho que estamos, ainda há espaço para obras longas e com um ritmo mais lento, que vão em direção contrária ao gosto e consumo moldados para o espectador contemporâneo?
A discussão sobre O Irlandês é minha primeira lembrança de um debate sobre a aversão aos filmes com mais de duas horas nas redes sociais e entre pessoas minimamente interessadas por cinema. Não coincidentemente, a pauta era um filme de streaming, daquela que é responsável por grandes mudanças no cenário atual do cinema, a Netflix. Na época era possível encontrar guias na internet que davam sugestões para assistir ao filme de Scorsese em partes, como episódios de uma série. Nada poderia ser mais característico de uma mudança que já havia acontecido no espectador atual, que é capaz de passar muito mais do que três horas na frente da televisão, desde que seja constantemente estimulado por mudanças e ganchos narrativos para maratonar episódios, consumindo conteúdos que permitam uma atenção parcial (dividida entre a televisão e o celular) sem grandes prejuízos no entendimento do todo e que possam ser controlados, possibilitando a pausa constante e eventuais retornos para algo que foi perdido. Dessa forma, o filme de 2019 não era uma ameaça por sua duração, mas pela ideia de que era necessário assistir ao longa de uma vez só, sem capítulos, sem pausas, sem dividir a atenção com outro dispositivo. Ainda que possa existir algum preciosismo no discurso do crítico que virou piada recriminando as pausas, certamente segmentar um filme em partes não pensadas por seu autor prejudica a experiência, mas esse está longe de ser o problema, já que uma pausa para o banheiro não vai matar ninguém. A verdadeira preocupação aqui deveria ser: quando nos tornamos incapazes de prestar atenção em algo que dure mais do que 90 ou 120 minutos e quem se interessa e se beneficia nessa ansiedade no consumo?
Pensando na mais famosa premiação do cinema, o último Oscar de melhor filme que foi entregue para uma obra com mais de 2h30 foi em 2007 para Os Infiltrados, também de Scorsese. Já o último com mais de três horas que venceu o maior prêmio da cerimônia foi em 2004, com O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (Peter Jackson). No ano seguinte da votação da Sight and Sound, em 2023, um filme de ritmo acelerado e múltiplos estímulos para o espectador venceu a estatueta, com 140 minutos de duração. Talvez não sejam os 20 minutos além das duas horas tradicionais do cinema comercial que incomodem o público, então, mas uma combinação da duração, ritmo e conteúdo que se encaixe em seus padrões atuais. Até agora pensamos no tempo de duração principalmente, porém, ao pensarmos em Jeanne Dielman, o ritmo é algo importantíssimo. Na verdade, o tempo é a essência do longa de Akerman, sendo tão protagonista quanto Delphine Seyrig.
Ironicamente, pode-se dizer que Jeanne Dielman é dividido em partes. São três dias na vida dessa mãe, dona de casa e profissional do sexo, que acompanhamos numa separação por blocos que os identificam. Mas, essas marcações dos dias não são intervalos pensados pela diretora como pausas, como outros longas de maior duração possuem - os intermission -, e (preferencialmente) devem ser assistidos sem paradas, em uma tacada só, de forma a realmente sentir o peso do tempo que Akerman brilhantemente projetou. No primeiro dia, observamos a rotina da mulher como que aprendendo seu ciclo de atividades, seu ritual diário, cronometrado e milimetricamente organizado. Seus gestos parecem rigidamente planejados, como a engrenagem de uma máquina que não para de funcionar com o objetivo de manter o lar em ordem e o filho cuidado. A sensação de lentidão vem da forma como a diretora filma essas cenas, com uma câmera estática, que olha sem pressa para as tarefas, aliada à montagem. Muitas tarefas são mostradas praticamente na íntegra, sem cortes. Não é o tempo real de fato, mas fragmentos reconstruídos que dão a impressão do tempo real, criando assim a "pressão do tempo" que sentimos, algo que Tarkovski descrevia:
“A consistência do tempo que corre através do plano, sua intensidade ou "densidade", pode ser chamada de pressão do tempo; assim, então, a montagem pode ser vista como a união de peças feita com base na pressão do tempo existente em seu interior.”
Em Jeanne Dielman, a montagem acompanha perfeitamente a expressão de tempo que foi filmada, criando o ritmo não exatamente como algo lento, mas o mais próximo de como ele realmente é. Essa consistência do tempo é resultado de muita dedicação e ensaios de Chantal e Delphine e é tão bem montada que mesmo quando um bom tempo é suprimido - como nas saídas noturnas com o filho ou quando atende seus clientes - quase não sentimos, como se o dia continuasse sem quebras e aquele momento cortado simplesmente não tivesse passado. Porém, essa é uma sensação que, assim como o peso da rotina, só pode ser sentida ao se dedicar assistindo ao filme sem pausas e distrações. É preciso olhar para o que não é olhado, dar as horas do seu dia para assistir a uma mulher fazendo o que muitos não se importam em ver.
A ideia de assistir a um filme como esse olhando as redes sociais no celular, por exemplo, é como destruir completamente o seu propósito. Pode parecer para alguns algo extremamente problemático e austero de se dizer, portanto, acrescento aqui a observação de que vemos um filme como podemos, encaixamos esses momentos em nossas vidas da melhor forma que conseguimos, logo, a ideia de evitar pausas e distrações se aplica mais a uma lógica de preguiça, vício e desatenção intencional do que a necessidades que obrigam interrupções. A verdade é que as propostas de um filme só podem ser assimiladas completamente se realmente pararmos para o assistir como deve ser assistido, dentro das possibilidades, que se faça o melhor. Da mesma forma, ver um filme removendo seu som ou acelerando sua velocidade tirará completamente sua essência e destruirá sua proposta, artifícios que não são justificáveis em nenhum cenário. O recente eleito melhor filme de todos os tempos precisa do tempo, necessita consumir essas horas do espectador para dizer tudo que tem a dizer. Era a Chantal mesma quem dizia que com seus filmes era possível sentir cada segundo passar por seus corpos, em oposição à ideia que as pessoas costumam propagar de que um bom filme faz sentirmos que o tempo nem passou. No caso dos produtos de streamings, às vezes não só não sentimos o tempo passar como perdemos completamente a noção dele nas maratonas de horas de consumo desenfreado de séries pensadas por algoritmos, que em alguns casos não se prejudicam tanto por uma distração e talvez até a recebam de bom grado.
Por esse caminho podemos pensar como nos últimos tempos os filmes com mais de duas horas de duração, com maiores distribuições comerciais, precisaram ser justamente os mais “acelerados”, que seguem a lógica de prender a atenção do espectador atual. Missão: Impossível - Acerto de Contas Parte 1 (Christopher McQuarrie, 2023), com 163 minutos, John Wick 4 (Chad Stahelski, 2023), com 170 minutos, Avatar: O Caminho da Água (James Cameron, 2022), com 192 minutos, Matrix Resurrections (Lana Wachowski, 2021), com 147 minutos, Vingadores: Ultimato (Anthony Russo, Joe Russo, 2019), com 181 minutos. Todos filmes com durações consideradas mais longas, mas com ritmos acelerados, com a ação estimulando e dissipando a noção de tempo passado do espectador - e bem recebidos por seus públicos sem grandes reclamações sobre os minutos. Assim, o cinema de maior visibilidade se adequa aos novos moldes para ainda assim conseguir criar seus filmes na duração que precisam, ou, em alguns casos, apenas seguem o próprio projeto de que fazem parte. No entanto, parece que nem todos os diretores são tão bem recebidos com suas muitas horas propostas. Enquanto pensava na elaboração desse texto, já com o tema em mente, uma nova polêmica surgiu na internet com a especulação de que o próximo filme de Scorsese (ele outra vez) duraria 3 horas e 54 minutos, algo que nem era um fato ainda.
Essa ideia de que as longas durações devem se adaptar a outros modelos de narrativa é nada mais do que fruto desse vício em um consumo acelerado (aliado a um interesse comercial). Tanto pela falta de concentração, por estarmos sempre com nossa atenção disputada por diversas mídias, o que acaba por preencher até os momentos de tédio com estímulos, como também pela falta de tempo para na maioria dos dias úteis não conseguir consumir algo além de um episódio de série enquanto nos alimentamos e nos atualizamos, devido à precarização do trabalho, jornadas exaustivas e uma lógica social que faz o tempo custar cada vez mais caro. Portanto, não deveriam ser os filmes obrigados a se encaixarem nessa lógica para atenderem tal realidade precária, mas sim nossas preferências ao escolher o que assistir que deveriam nos pertencer e não serem manipuladas por grandes empresas, e nossa qualidade de vida que criticamente precisa mudar para que seja possível ser dono de seu próprio tempo e capaz de passar horas de seu dia apreciando um filme, se assim o quiser. No fim, acabamos por discutir sobre pausas, durações e outras questões quando o real problema é um projeto que criadores de conteúdo, críticos, pesquisadores e trabalhadores que se dedicam a falar sobre cinema precisam combater, ampliando a noção do público sobre outras possibilidades vindas de todos os países, formas, ritmos, durações e gêneros. Quando uma pessoa que trabalha com cinema, seja criando conteúdo ou ativamente na criação de filmes, dá declarações como a vista acima, ela escolhe o lado que quer apoiar e que certamente lhe é mais lucrativo, e esse lado nunca será o melhor interesse do público. Da mesma forma vemos agora diretores e produtores defendendo o uso de inteligência artificial para criação de roteiros em tempos de desvalorização dos trabalhadores da área. Quem acredita que é chato ver um filme de três horas também pode acreditar que tanto faz o roteiro ser feito por um humano ou um robô e provavelmente lidaremos com os impactos disso muito em breve.
É importante ressaltar aqui que a proposta de transformar um filme longo em uma série ou minissérie, baseando-se unicamente por sua duração, não deve ser rejeitada por um formato ser melhor ou pior do que o outro, mas sim pelas diferenças básicas que se dão nas estruturas desses diferentes produtos. Dadas algumas exceções, uma série é pensada para ser uma série e um filme é pensado para ser um filme, ainda que pareça óbvio, algumas vezes precisamos pontuar o que é lógico. Existem diversas séries e minisséries excelentes que também as são por saberem trabalhar bem dentro dos formatos propostos. Cogitar que um filme de mais de três horas (ainda nem lançado) deveria ser reformulado para uma narrativa em episódios é descartar a capacidade do cinema de contar a história no tempo que foi pensado por seu autor - também a do espectador de conseguir apreciar tal obra sem nem ao menos dar a ele essa chance - e atestar sem nenhum fundamento que as séries, e portanto os streamings, são o lugar mais apropriado para toda narrativa que ultrapasse 120 minutos. Os outros modelos existem e funcionam, desde que a obra seja pensada para isso.
Da mesma forma, é totalmente equivocado pensar que uma história precisa preencher de determinada forma as horas de um filme para que valha a pena o assistir por mais de duas horas ou que existem conteúdos certos e errados para as maiores durações. Um filme tem o tempo que precisa ter, não existem e nem devem existir regras que ditam isso. Se Jeanne Dielman não durasse mais do que três horas, não passaria da mesma forma, com a mesma eficácia, como é angustiante o ritual de vida daquela mulher e a sensação de alívio de seu rompante violento no final, assim como não seria possível compreender a diferença entre o tédio que ela sente e a inquietude quando está com tempo sobrando e o conforto em sentar à mesa no escuro após se revoltar contra a figura masculina.
Chantal pensou seu longa para que pudéssemos perceber a rotina dessa mulher e entender a diferença de cada dia passado: do primeiro em que tudo é milimetricamente coordenado, do segundo em que o tempo falta e ela se atrasa, perdendo o controle de algumas ações, e do terceiro em que o tempo sobra e a falta do que fazer sufoca a personagem. O tempo é fundamental aqui para olharmos as tarefas domésticas com a atenção que o cinema nunca deu, são momentos que sempre foram cortados dos filmes: lavar a louça, empanar os bifes, descascar as batatas, alinhar os objetos, limpar o banheiro, tudo mostrado numa ilusão do tempo que realmente leva para ser feito. E, nesse sentido, não sinto que o ritmo das ações é realmente tão lento, já que em muitos momentos Jeanne fica impaciente e faz as coisas com agilidade, mas, como são ações tidas como tediosas por nós, parecem mais lentas no conjunto.
Existe uma ideia de que “não acontece nada” em filmes de slow cinema ou mesmo de fluxo, como as tarefas que citei que fazem tudo parecer mais lento, por serem justamente parte dessa construção que nada está acontecendo, mas está. Talvez não sejam explosões, carros em alta velocidade, heróis voando, brigas, ou uma grande reviravolta no roteiro, mas algo definitivamente está acontecendo. Em Dias (Tsai Ming-Liang, 2020), existe um aspecto similar quando observamos de forma contemplativa, e separadamente, os momentos mais simples das rotinas de dois homens que se encontram em dado momento. Ainda que pareça que nada acontece e que o tempo é arrastado, só assim é possível entender a diferença entre a banalidade da vida de ambos e os momentos especiais quando estão juntos, em um encontro efêmero, mas que deixa lembranças. Em muitas obras de Chantal, nesse universo hiper-realista da diretora, existe a ideia de representar aquilo que acontece quando nada está acontecendo. É também o caso de Eu, Tu, Ele, Ela (1974), que explora o tempo expandido e o tédio em seu primeiro ato - quando a mulher interpretada pela própria Akerman passa horas no marasmo, esperando e tentando se sentir satisfeita comendo colheradas de açúcar - em oposição a um encontro ao final, com a ex-namorada, que finalmente “mata a fome” da personagem.
O “nada” diz muito, mas assim como Jeanne se entedia, é possível que o tédio passe para o espectador, a vontade de olhar o celular e rolar o feed de alguma rede social ou talvez de dormir. Apichatpong disse uma vez que o sono é uma reação bem-vinda aos espectadores de seus filmes, por ser uma resposta de relaxamento, e quando pensamos na proposta do diretor em seus trabalhos, isso faz total sentido. Nesses filmes “lentos”, o ritmo e o tempo podem fazer parte de várias formas, como algo contemplativo, em longos planos de observação, como algo poético ou como um peso, um sofrimento, algo que se arrasta para causar o próprio efeito do tempo em nós, ou diversas outras formas, como a própria Chantal faz ao tornar o tempo um personagem importante, como se desse a ele um corpo, o tornando algo concreto. Não é a velocidade que preenche cada minuto para nos entreter que dita a qualidade de uma obra, como se um filme acelerado fosse divertido e bom, e um lento, chato e ruim, mas se o ritmo funciona ou não no todo é, sim, um fator crucial.
Se o slow cinema vai contra a velocidade acelerada do capitalismo, dando luz aos menores acontecimentos, Jeanne Dielman é a expressão máxima disso dentro de uma lógica feminista (ainda que Akerman não aceitasse essa nomenclatura), e, para tal, precisa usar aquilo de mais valioso que o capitalismo tira de nós. Dividir o longa, portanto, em três capítulos, considerando cada dia um capítulo, remove e alivia a pressão do tempo, tornando a obra apenas uma observação esquisita de uma rotina, com uma ação totalmente exagerada ao fim. Assim como Scorsese certamente precisa de todos os minutos que seu filme terá para contar sua história da forma que quer contar, ou Béla Tarr precisou de 7 horas e 30 minutos para nos arrastar pela lama das estradas de Sátántangó, Akerman não poderia remover um minuto a mais sem alterar sua intenção. Pensar nisso é também entender que o montador de um filme não trabalha para “limpar” o material filmado ou fazê-lo caber numa duração estipulada, a montagem também faz parte do todo da obra, dirigida por seu autor, e ainda que existam diversos filmes em que sentimos partes completamente desnecessárias, elas estão lá porque seu diretor assim o quis (desconsiderando aqui influências de estúdios e produtores), e só podemos julgar aquilo pelo que é e não pelo que poderia ser. Portanto, não é atestar que todos os filmes de 7 horas são excelentes porque as possuem, mas dizer que não há uma regra quanto a isso e cada obra deve durar o tempo que seu autor julgar necessário, sendo o resultado bom ou ruim.
No caso de Jeanne Dielman, isso funciona perfeitamente, e seu tempo de duração não só não prejudica a experiência - e por que motivo deveria, não é mesmo? - como é uma das maiores razões de ser a grandiosa obra que é. Mas é difícil não pensar o que acontecerá com o cinema, e o que já está acontecendo na verdade, com essa influência do streaming e das mídias de consumo rápido. Em abril de 2023, o sindicato dos roteiristas nos EUA votou pela greve, o que também é uma consequência do crescimento das séries de streaming que vem diretamente atrelada a uma desvalorização dos trabalhadores do audiovisual no mundo todo. Já vemos o quanto os filmes estão sendo afetados e seguem lógicas para acompanhar as novas tendências, assim como muitos diretores acabam dependendo dessas mesmas plataformas para continuarem trabalhando. Assim, filmes mais longos estão ou inseridos no modelo que mais prende a atenção ou com maior liberdade num circuito independente e de festivais, o que reforça uma ideia equivocada de que existem filmes mais artísticos e inacessíveis em oposição aos filmes tidos como acessíveis para o grande público, menosprezado por esse raciocínio. É como se os mais de 180 minutos de um filme da Marvel não fossem um obstáculo a ser dividido em capítulos ou uma chatice para ser atravessada, mas os mais de 180 minutos de um filme do Scorsese fossem uma afronta ao espectador.
Dialogar sobre Jeanne Dielman nesse meio, então, parece impossível. Ele é um exemplo, como tantos outros que podemos encaixar na mesma lógica, que vai num movimento contrário ao que está sendo construído para o gosto do público atual. A indústria está se esforçando e tendo muito sucesso para programar o que preferimos assistir e assim ela mesma suprir essa demanda, investindo milhões em seriados, franquias, filmes baseados em produtos e nostalgia, que fazem o espectador estar sempre esperando o que vem a seguir, pronto para consumir cada vez mais (na tela ou nas prateleiras), com sua atenção dividida entre todas as formas que a querem comercializar por meio de anúncios, inserções de marcas e afins. Isso sem falar em como essa manipulação da atenção serve a diversos interesses políticos. Não à toa, o filme que mais fez sucesso e mais gerou polêmica na temporada de 2022/2023 é um filme que se assemelha muito aos filmes de franquias de heróis, e que entrega múltiplos estímulos em uma trama extremamente rasa, mas muito apegada à uma certa temática, tornando-o facilmente consumido como um atestado de crenças sem que o espectador realmente precise se esforçar e de forma alguma consiga se entediar com respiros e espaços vazios na trama. Além disso tudo, ele serviu como uma espécie de garantidor de uma evolução na indústria hollywoodiana, quando na verdade não houve nenhum avanço, continuamos presos ao mesmo lugar comum, mas a ilusão foi bem vendida e comprada. Não é inovador, portanto, já que vai na onda do que a indústria já está pavimentando faz tempo, além de servir aos seus próprios interesses. O gosto já foi construído nesse espectador e agora foi atestado por uma premiação que faz parte dessa mesma indústria. A roda não para de girar e exemplos como esse não são raros.
Então, é muito mais difícil que as pessoas tenham vontade de assistir a um filme de mais de duas horas que vai contra tudo isso (mesmo que seja muito mais revolucionário do que a maioria dos filmes julgados assim atualmente), ainda que existam muitos apreciadores da sétima arte que já estão com as cabeças mais acostumadas a diversas formas de fazer cinema. Na verdade, talvez nem seja dada a possibilidade para muitas pessoas escolherem assistir, gostar ou desgostar de tais obras, basta procurar os filmes de Chantal nos maiores streamings para dar de cara com essa impossibilidade. Jeanne Dielman está presa a um ritual diário de trabalhos invisíveis, como mãe, dona de casa e com seu trabalho com sexo, oprimida pelo capitalismo e pelo patriarcado, presa também no filme, em que Akerman rouba nossas horas de vida. E de tantas pessoas que roubam nosso tempo, já que estamos todos também presos a um sistema que quer ditar nossos hábitos, eu prefiro entregar o meu para as diretoras e os diretores brilhantes que fazem bons filmes, com quantas horas de duração precisarem pegar da minha vida.