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Foto do escritorRaissa Ferreira

Tribeca 2024 | Arzé

Em sua estreia na direção de longas, Mira Shaib faz investigação da diversidade cultural e dos problemas socioeconômicos do Líbano por meio da jornada exaustiva de uma mãe trabalhadora


Arzé Mira Shaib

Uma das grandes alegrias de cobrir festivais internacionais é o contato com obras de diferentes origens, nesse caso, a visão do Líbano é bastante rara ao espectador de cinema afastado geograficamente do país. Mira Shaib interessantemente consegue transpor para quem assiste seu filme todo um panorama da diversidade cultural desse lugar, em que cada bairro cruzado por Arzé (Diamand Abou Abboud) traz características próprias. De turcos até franceses, o Líbano é influenciado culturalmente por diversas nações e religiões, o que fica bastante claro pela forma como a protagonista se adequa a cada lugar que precisa visitar, trocando de roupas, acessórios e sotaque para que seja aceita e, principalmente, acolhida por cada comunidade. Em lugares assim, as pessoas ajudam seus iguais e não se importam muito com o que vem de fora, a centralização de culturas em bairros e pequenas comunidades formam essas redes e a esperteza de Arzé em se mascarar e misturar facilmente, faz com que ganhe a empatia de diferentes grupos, embora não acredite nem faça parte de nenhum deles. A jornada exaustiva dessa mulher se dá por algo bastante familiar à história do cinema, já que em 1948, Vittorio De Sica realizava uma das obras mais importantes que refletia outro país em crise, em que um meio de transporte próprio era a única forma de um pai sustentar seu filho, e sua casa, tornando o roubo da bicicleta o centro de uma tocante narrativa que ecoa até hoje nos amantes da sétima arte. Aqui a scooter comprada com muito esforço é a única maneira de entregar mais esfihas e só assim garantir um sustento melhor para a família, portanto, se estabelece a mesma lógica de Ladrões de Bicicleta, mas com um olhar feminino, de uma mulher forte e independente, em um país com maioria árabe, atravessando uma grande crise. 


É fascinante como Mira Shaib usa as esfihas, o produto que Arzé cria com as próprias mãos para vender, e que é tão facilmente ligado à cultura desse lugar, como uma moeda de troca a cada encontro que se dá. Não importa a crença ou o sotaque de quem essa mãe visita, todos aceitam uma esfiha para amolecer o coração e ganhar empatia por essa mulher. A caixa de papel sempre em mãos e a postura firme de Diamand Abou Abboud forma uma protagonista muito forte, a estrutura de qualquer sociedade, a mãe que cria sozinha o filho, faz de tudo para manter a casa e a família de pé. Essa instituição inabalável, mas muito cansada das porradas da vida, se recusa a desistir não importa o que aconteça. Arzé vai até todos os lugares que pode pensar, caminhando, pegando ônibus, táxi, o que for preciso, fala com quem for e se mete com qualquer homem no seu caminho, tudo para encontrar a moto roubada. Sem scooter não há como ganhar o sustento, e assim como pai e filho se aproximavam ao buscar a bicicleta que permitiria o trabalho, Arzé e Kinan (Bilal Al Hamwi) estreitam laços a partir dessa jornada. O jovem rapaz quer fugir do Líbano, como grande parte da população que não vê futuro no lugar, e a Europa é o destino dos sonhos, a mesma que De Sica retratava completamente quebrada no passado.  


Enquanto o longa passeia por lugares, aumentando a angústia dessa busca que parece completamente impossível, Mira Shaib apresenta ao espectador o Líbano, suas particularidades e seus problemas. A obra encontra um equilíbrio ao focar em um objetivo muito claro, mas conseguindo abordar pelos cantos os desafios dessa sociedade, o marido da irmã que fora sequestrado e morto, prédios em ruínas, pessoas totalmente sem dinheiro, o dólar sendo mais aceito, os protestos sempre nas ruas e a juventude querendo escapar. Entretanto, o bom humor que emprega é capaz de aliviar a atmosfera pesada da narrativa, como a cada vez que Arzé entra na pequena lojinha para conseguir um novo artefato para enganar outra comunidade, a tensão cômica entre ela e a vendedora quase tira totalmente o peso da importância de encontrar essa moto. São pequenos respiros que tornam Arzé muito mais leve, embora nunca seja possível parar de torcer para que mãe e filho encontrem seu meio de transporte roubado. As parcelas precisam ser pagas, a bolsa é roubada e o confronto com a tia piora a situação, enquanto o filme vai fechando o cerco, para que não seja insuportável pensar como essas pessoas vão sobreviver ao dia de amanhã, existe o humor, de Arzé forjando um sotaque, aprendendo a dizer “mobilete” ou qual colar combina mais com cada crença. A imponência dessa pequena e magra mulher é uma força de mil homens, e com uma ajudinha do destino, sua coragem e o laço refeito com o filho são capazes de afirmar uma esperança final. 


Se em Ladrões de Bicicleta sobra tristeza, Arzé tem otimismo mesmo com o mundo ruindo ao seu redor. A potência da mulher é capaz de vencer qualquer obstáculo, e recuperar o meio de trabalho é a única forma da trabalhadora pobre ver luz no fim do túnel. 



 

Nota da crítica:

4/5


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