Visions du Réel 2025 | Aurora
- Raissa Ferreira
- há 4 dias
- 3 min de leitura
João Vieira Torres divaga sobre si mesmo e tem dificuldade de permitir que as histórias das mulheres ao seu redor sejam contadas com a mesma importância
Quem é Aurora? E quem é seu neto? Até o final dos 129 minutos que levam para João Vieira Torres viajar pelo Brasil, saindo da França, em divagações que têm o estopim em um sonho com a mãe e a avó, é possível que quem assistiu esteja totalmente perdido entre essas duas perguntas. João começa contando um pouco sobre seu renascimento em solo estrangeiro, mas retorna ao sertão da Bahia para, aparentemente, reencontrar as pessoas que nasceram com ajuda de Aurora, parideira na cidade em que viveu até um ano depois do nascimento do neto e cineasta. Esse homem, que morou entre Bahia, Recife, São Paulo, Estados Unidos e França (talvez outros lugares que tenham sido mencionados no longa mas esquecidos agora), faz andanças durante seu documentário e se distrai facilmente com qualquer novo fio narrativo. Aurora é, portanto, sobre muitas coisas, menos sobre sua avó, mais sobre si mesmo e, a cada novo encontro, sobre outras pessoas e temas. Poderia até ser bonito o fluxo do deixar-se levar narrativo, mas acaba fatigante e sem foco.
João praticamente não conheceu Aurora, que faleceu a caminho de seu aniversário de um ano. A conexão de ambos, no entanto, é descrita, por ele mesmo e por outros familiares, como algo forte, talvez espiritual. Daí o sonho, que o diretor sempre diz que foi com a avó, mas parece ter sido mais sobre sua mãe, o fez buscar o passado. Nesse caminho, João encontra diversas mulheres e lugares, fala de religião, de plantas que curam, de violência contra a mulher, do menino gay que cresceu no nordeste e viveu no mundo, da biblioteca cheia de plantas em que mora na França, da mãe, da amiga da juventude, enfim, sabe-se lá mais quantos temas e personagens atravessam as mais de duas horas de Aurora. O relevante mesmo é perceber como o longa só funciona organicamente e consegue se conectar com quem assiste, quando João abre espaço para escutar o outro, ou melhor, as outras.
O diretor fala muito e fala devagar, monta suas frases espaçadamente, como que querendo dar relevância a cada pontuação. Seu texto, que muitas vezes busca o caminho mais difícil de dizer algo, rebusca poesia em algo simples, soa confuso, pouco autêntico. Alguns fatos de sua história são complexos de remontar, porque a cadência do discurso e a forma como João o apresenta, parece mais interessado em soar profundo e belo, do que realmente colocar sinceramente o que tem a se dizer. É fácil notar essa problemática, pois sempre que algum personagem é apresentado dizendo livremente o que pensa ou o que passou, sem interrupção do narrador, o filme tem lampejos muito mais agradáveis. A mãe do cineasta, por exemplo, entre outras mulheres, fala muito melhor dos temas que João atropela, do que ele mesmo em suas cansativas narrações em off. Até mesmo a igreja evangélica, filmada despretensiosamente, tem momentos mais honestos.
Depois de muito caminhar e viajar, Aurora vai se fechando mais na temática da violência e dos abusos contra as mulheres, costurando a vivência das familiares de João com um histórico brasileiro bastante trágico. Esse ponto, muito relevante, até esteve presente desde o começo, mas o condutor da narrativa parecia mais interessado em si mesmo ou em alterar o foco a outras coisas que apareciam, para realmente se concentrar nesse tema de forma consistente. Há muita dificuldade em conseguir unir as histórias, principalmente a do narrador com a das mulheres ao seu redor, elas soam desconexas e, por mais importante que seja trazer uma pauta, o como, ainda mais no cinema, é fundamental.
Entre o sonho e o plano espiritual, entre as crenças populares e a cruel realidade da vivência feminina no sertão, e entre o contar a própria história, do menino queer cercado de mulheres fortes, e contar a história de Aurora e dessas tantas outras figuras, João Vieira Torres parece perdido em seus pensamentos e delírios. O ato de falar mais e ouvir menos, prejudica consideravelmente o resultado final, que se torna cansativo e autocentrado, enquanto há momentos brilhantes de mulheres -, as que talvez seriam o centro do longa, difícil dizer -, pedindo para serem melhor aproveitados. É de se pensar que não existem histórias boas ou ruins, mas pessoas que as sabem ou não contar. Em Aurora, esse é o maior problema, junto ao grande defeito de um autor que não soube decidir entre fazer apenas um filme centrado em si mesmo ou humildemente se colocar no lugar de escuta das mulheres que também formam essa história.
Esse texto faz parte da cobertura do Visions du Réel 2025 - Festival Internacional de Cinema de Nyon
Nota da crítica:
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