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Visions du Réel 2025 | Higher Than Acidic Clouds

Ali Asgari traz o íntimo e pessoal para compor seu retrato onírico de resistência

Higher Than Acidic Clouds

Ao final de Crônicas do Irã, os prédios de Teerã começam a desabar enquanto a terra treme, mas as montanhas permanecem imóveis no horizonte. Na janela do apartamento em que Ali Asgari retrata a si mesmo em Higher Than Acidic Clouds, a paisagem é totalmente urbana, de grandes edifícios, e, encobrindo o céu, uma massiva nuvem escura, sólida como uma rocha. Entre uma obra e outra, há a motivação para a segunda existir. Após apresentar seu filme no Festival de Cannes 2023, Asgari retornou para casa e foi imediatamente proibido de deixar o Irã, além de ter seus bens confiscados e ser interrogado pelas autoridades. Esse acontecimento ultrajante não é novidade nenhuma para quem acompanha o cinema iraniano. Nos últimos anos Jafar Panahi foi preso em Teerã, Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeh foram impedidos de viajar para a estreia de seu filme em Berlim e Mohammad Rasoulof, antes de ser preso, saiu do país atravessando a fronteira à pé.


O período em que Asgari permaneceu sem seu celular e seus bens, confinado em casa, o levou aos pensamentos que se tornaram seu primeiro longa documental. Mas, Higher Than Acidic Clouds é, como muitos filmes iranianos, uma obra que transcende as linhas entre a ficção e a realidade, resultando mais em um sonho narrado, do que algo que precisa ser rotulado. A razão de aspecto serve à atmosfera de enclausuramento em que o diretor, dito claustrofóbico, se sente, enquanto o preto e branco funciona tanto para transformar as imagens em algo saído dos cantos da memória, e traduzido em hipnotizantes cenas oníricas, quanto para transpor imageticamente a situação política enfrentada.


As ações contra Asgari são contra seu poder criativo, portanto toda cor de Teerã se perde, assim como a paisagem se altera em relação a sua memória da infância. Uma nuvem enorme e opressiva permanece agora no horizonte, com ajuda dos efeitos especiais. Higher Than Acidic Clouds torna-se, portanto, a forma de expressão do diretor, de colocar em tela a única coisa que nenhum regime ou prisão pode tirar de qualquer pessoa, o que há dentro de sua mente. Dessa forma, o trabalho de câmera é fundamental para estruturar o que o cineasta pretende, se movendo de maneira controlada e estável, em travellings que não remetem a uma pessoa caminhando, ou voando (como tanto é dito na narração poética do filme), mas a lembranças transformadas em sonhos, temática central do texto de Asgari.


Ao remontar cenas de interrogatórios, colocar personagens para circularem no apartamento vasculhando coisas enquanto o cineasta permanece sentado, e retratar esses homens sem voz, apenas como uma presença obscura de autoridade, Asgari consegue colocar em seu filme tudo aquilo que não filmou, mas possui gravado na mente. Algo semelhante ocorre com sua nostálgica representação da infância ou das mãos da mãe e da figura materna, bem como de lugares, como Roma, onde estudou, e da Islândia, que mesmo antes de conhecer, já havia visto em seus sonhos. A resistência e libertação de Asgari em Higher Than Acidic Clouds não está em um confronto direto, o que é mais visto em Crônicas do Irã, mas no próprio ato de criar, algo tão parte do humano, mas tão repreendido no Irã.


É hipnótico como as cenas se apresentam, o ritmo da montagem e da narração, junto de um texto extremamente pessoal, evocam emoções muito íntimas. Partilhando memórias, Asgari transporta a pessoa espectadora para dentro daquele universo cinza, para assistir aos cantos de sua mente e às imagens que imaginou, como se flutuasse junto da câmera. O aparato, inclusive, parece invisível, é mais como se uma força imaterial guiasse o registro. Assim, é ainda mais poética a revelação da equipe e seus equipamentos ao final, pois Asgari brinca nos limites do documentário, com sua realidade, mas valendo-se da técnica para construir outras possibilidades. 


Como pode o cinema projetar sonhos, ideias e imagens, que apenas existem nas cabeças das pessoas, em uma tela? Ali Asgari faz ainda mais, projeta em suas irmãs um de seus filmes que, por sua vez, existe a partir da imagem que ele construiu ao observar suas vidas. Mais do que um mergulho sensível em si mesmo e um ato de resistência contra o sistema que impõe barreiras a ele e a tantos outros, Higher Than Acidic Clouds é um manifesto sobre o cinema, sobre criar arte como reflexo do criador e de suas experiências, como espelho do mundo que o cerca ou enfrentamento para o modificar, como representação da realidade em que se vive ou a construção de outra diferente, como arma e voz tão poderosa que tentam silenciar. 




 

Nota da crítica:

4/5


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