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Visions du Réel 2025 | Niñxs

Kani Lapuerta faz um filme em que dar o controle narrativo é ferramenta política e de empoderamento para pessoas trans

Niñxs

Como é ser uma menina trans crescendo em uma aldeia no México? Com essa pergunta, Kani Lapuerta guia seu documentário a investigar por oito anos o amadurecimento de Karla, desde seus 7 anos de idade. A narração bem humorada, que é mais uma conversa colaborativa entre cineasta e personagem principal, serve como estrutura para o material que remonta sua vida e adentra sua intimidade. É a própria Karla que vai “guiando” a montagem enquanto Lapuerta deixa ela bastante livre para comandar a narrativa. Esse mesmo conforto é dado a ela quando, no começo das filmagens, o diretor faz questão de esclarecer o que é o filme e se assegurar de que ela compreendeu exatamente do que se trata e que de fato aceita fazer parte. É um processo de muito respeito e admiração que resulta em um longa divertido, leve e empoderador. 


Lapuerta, também uma pessoa trans, não faz questão de retratar exatamente ou exclusivamente o que é uma transição, mas mostrar o amadurecimento de Karla como faria com qualquer jovem. Suas questões de gênero, tratadas de forma muito sensível, justamente pela humildade do cineasta de permitir que a própria protagonista mostre o que quer, lide com os assuntos da forma que prefere e fique livre para se expressar em seu filme, acabam servindo como material para pessoas se enxergarem em tela. Em dado momento, Karla diz que gostaria que Niñxs fosse um filme feliz, mostrando alegria, diferente das obras que retratam pessoas trans sofrendo, morrendo ou se prostituindo. É exatamente isso que Lapuerta atinge. Mesmo que seu foco seja uma jovem apenas, o mundo ao seu redor traz para a tela diversas questões e outras vivências, que constroem uma imagem maior em que o sentimento é sempre mantido de forma mais otimista, ainda que discuta questões sérias.


O cineasta conheceu Karla a partir de seus pais, descritos em Niñxs como hippies. Desde muito cedo, vemos ambos lidando muito bem com a transição da filha, a chamando pelo nome que escolheu, incentivando a usar as roupas, maquiagens e acessórios que quis, e também participando ativamente nas discussões com escolas e outras burocracias para ter certeza de sua segurança e bem-estar. É de se pensar que um casal que gosta de arte, é mais progressista e apoia a filha dessa forma, seja de fato muito legal, mas a, em algum ponto do longa, adolescente Karla, faz questão de rebater a impressão. Afinal, pais são pais, e mesmo nesse cenário mais otimista, a menina encontra resistência e embate com suas decisões sobre sua própria vida e corpo.


Em dado momento a mãe de Karla até fica um tanto ausente das filmagens, a jovem faz menção em uma de suas falas na narração sobre problemas na relação das duas e ela acaba nem estando presente quando o documento da filha é alterado legalmente. Se há alguma rusga ou algo mal resolvido, personagem e cineasta não se aprofundam e a mãe retorna a fazer parte, apoiar e ser parceira da filha dentro das filmagens. Não é que Niñxs evite debates mais complicados, mas respeita muito aqueles que filma, então imagina-se que o que está em tela é o que é confortável para todas as pessoas retratadas. 


Conforme Karla vai adentrando mais na adolescência, suas questões se tornam mais densas. Tão comum na vida de qualquer um, é uma fase brutal, ainda mais quando se é a única garota trans na escola da aldeia. Tepoztlán, lugar em que a família vive para que a asma da filha fique mais controlada, é uma pequena cidade rodeada de penhascos, há uma hora da Cidade do México, de onde vieram originalmente. É, portanto, complicado para ela encontrar uma comunidade de apoio. Mas, mais difícil ainda, é passar por tudo isso quando bem no meio, encontra-se uma pandemia e o isolamento social. 


Niñxs acaba sendo também o retrato de uma juventude em tempos de desconexão social e grande uso da internet para o desenvolvimento pessoal. É no tiktok que Karla encontra uma forma de ser ela mesma e se expressar, por exemplo. Além de passar boa parte de sua transição fechada em casa, teve que se preparar para ir à escola com um nome que ainda não está em seus documentos e enfrentar pais, alunos e professores. Os desafios da adolescência são agravados, mas Karla ainda conta com bastante apoio ao seu redor. Entre tantas mudanças, o longa não só as assume bem, como também tem em sua forma diferentes maneiras de contar essa história, jamais limitando-se à estrutura documental padrão. É livre e brinca com seu material.


O grande feito de Niñxs é como Lapuerta faz seu filme ser quase colaborativo, retratando o processo de inserir os personagens na obra e assumindo a personalidade confiante e engraçada de Karla para ser a condução principal do documentário. A narração, enfim, é o elemento fundamental para isso. Pessoas trans contarem suas próprias histórias é revolucionário e dar essa voz a uma menina tão jovem é empoderador, uma das maneiras mais interessantes de usar o cinema politicamente.


Se em algum momento Karla sugeriu um final bem obscuro, o que ela recebe é um olhar de muita admiração para quem é, uma carta de amor construída por oito anos e apresentada ao mundo que, certamente, servirá à importância tão citada por tantas pessoas durante o longa.




 

Nota da crítica:

3.5/5


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