Visions du Réel 2025 | To Use a Mountain
- Raissa Ferreira
- há 3 dias
- 3 min de leitura
Com a seriedade alinhada ao tema abordado, Casey Carter usa seu filme como denúncia bem fundamentada das ações tenebrosas de um governo contra o povo
Com um tom sombrio, To Use a Mountain convida a pessoa espectadora a analisar fatos, documentos oficiais, mapas e imagens de arquivo, ao lado de uma investigação em que o cineasta Casey Carter mantém-se praticamente na totalidade do tempo a uma certa distância para registrar os espaços e seus indivíduos. A história um tanto absurda, passa pelo Nuclear Waste Policy Act, que em 1982, selecionou seis comunidades rurais nos Estados Unidos, por meio do departamento de energia nacional, para identificar qual entre elas seria escolhida para despejar todo lixo nuclear do país. Carter visita, então, os seis candidatos, que não queriam de forma alguma serem os selecionados, e conhece seus moradores, costumes e problemas. Sem jamais abandonar a seriedade do assunto, o longa documental tem uma atmosfera densa e, talvez pela temática nuclear, soa por vezes como o registro de um ser extraterrestre, a documentação de uma situação alarmante por uma entidade externa, com uma trilha sonora bastante presente.
To Use a Mountain seleciona trechos de documentos oficiais, facilmente acessados por qualquer pessoa, e aproveita seus mapas para situar suas cenas. Em paralelo a essa burocracia, que é mais intrigante e ressalta a gravidade do assunto do que poderia ser entediante, há o lado humano, aquele tão pouco considerado pelo governo. O que análises em papeis não podem dizer ou descrever, são as pessoas que ali vivem, que Carter passa a registrar em relação direta aos fatos estudados. São comunidades rurais que dependem do que cultivam, povos indígenas em seus territórios e descendentes de escravos em suas terras herdadas. Todos extremamente ligados ao solo, à água e tudo que nasce e cresce na natureza.
Em alguns casos, já eram lugares afetados pela radiação, como terras em que exploram o urânio ou o espaço em que populações indígenas foram removidas para dar início ao Projeto Manhattan, que desenvolveu e produziu as primeiras bombas atômicas durante a Segunda Guerra Mundial. O lixo nuclear que deveria ser enterrado pelo Nuclear Waste Policy Act, ironicamente, existe majoritariamente pelo desenvolvimento de armas nucleares. Carter traça um caminho bem interessante em To Use a Mountain, passando pelos candidatos que negaram e lutaram contra o projeto absurdo, chegando aos três “finalistas”, até mostrar o processo que descartou um a um, sobrando seu objeto central e mais importante, a Yucca Mountain.
To Use a Mountain vale-se dos fatos, do que é concreto e indiscutível, emulando uma investigação como a do departamento de energia federal, mas, dessa vez, elevando o tom alarmante e dando rosto e voz às comunidades. A trilha sonora, por vezes, compete com o que é escutado, sempre soando como um recurso para chamar a atenção. Carter compreende a seriedade do que está registrando e, por isso, equilibra o tom sombrio a uma quantidade de tempo bem dosada para cada lugar, não demora demais em suas histórias, nem passa com pressa por elas. Unir cada etapa deste documentário é um estudo sobre o governo estadunidense, do genocídio dos povos indigenas e das consequências da produção de um material tão tóxico.
Enquanto o projeto permanece sem conclusão, o longa liga diretamente o capítulo sobre a Yucca Mountain com o momento presente, em que diversas pessoas protestam pelo fim dos testes nucleares no local. Além do depósito do lixo tóxico que deveria ser colocado na região pelo prazo de 10 mil anos, o que To Use a Mountain mostra, a partir dos fatos e dos depoimentos das pessoas mais afetadas pelas decisões governamentais, são as políticas feitas para destruir pequenas comunidades, populações já afetadas por contaminações e condutas racistas e de extermínio de povos originários. A produção de armas como as que foram usadas para matar centenas de milhares de pessoas no Japão, e deixaram outras centenas de milhares sofrendo consequências severas, afeta a própria população estadunidense e, mais ainda, aqueles que estavam lá muito antes, a quem as terras deveriam pertencer.
Carter não precisa dizer tudo isso literalmente, mas a organização do material que tem e sua viagem pelo país filmando as pessoas, serve como essa conclusão assustadora de algo que parece distante, afinal o projeto é, inicialmente, dos anos 80, mas não deixará de ser atual. As imagens de protestos anti-drone, por exemplo, falam diretamente com os testes que os Estados Unidos continuam realizando em Nevada, assim como um depoimento de um homem que guia o cineasta pela perspectiva do povo Shoshone, que luta até hoje pelos direitos de suas terras na Yucca Mountain.
Esse texto faz parte da cobertura do Visions du Réel 2025 - Festival Internacional de Cinema de Nyon
Nota da crítica:
Comments