Felix Hergert e Dominik Zietlow buscam de fora para dentro o que forma a grande comunidade prestes a ser demolida, refletindo uma crise de moradia em Zurique
Quando se fala em documentários e prédios, quem é brasileiro já automaticamente se lembra do grande filme de Coutinho, Edifício Master. Mas se ao observar o prédio em Copacabana, o documentarista buscava conhecer a história de cada vida ali dentro, Felix Hergert e Dominik Zietlow vão por outro caminho, que encontra com as pessoas para compreender a alma da estrutura física, em um caminho de fora para dentro, o oposto. Os prédios de Brunaupark formam quase uma cidade dentro da cidade, e ainda que o filme adentre os apartamentos para conhecer seus moradores, existe uma exaltação de toda sua forma externa, os parques e áreas comuns em que as crianças crescem, brincam e criam laços, os espaços abertos que acomodam confraternizações entre vizinhos e reuniões sobre suas manifestações contra a demolição, o quiosque onde comiam pizza há mais de 20 anos. O distanciamento dessa abordagem nem sempre facilita uma compreensão dos personagens, os tijolos humanos tão importantes aqui, transitando entre muitos idiomas sem realmente conhecer muito bem cada parte individual visitada. Ainda assim, essa comunidade se mostra muito mais do que um lugar para morar e enquanto o longa opta por praticamente não contextualizar esse lugar dentro de Zurique com seu entorno, é realmente como se o destacasse como um território independente, e assim seria totalmente, não fosse a presença de seu maior vilão, outro prédio, o do Banco Credit Suisse.
É curioso como a direção forma esse antagonismo puramente em concreto, colocando a estrutura do banco com seu letreiro imponente, logo ao lado de sua vítima, sempre como uma ameaça próxima. Não existe um rosto, nem um grupo de pessoas, que possa humanizar essa briga, e enquanto o Brunaupark possui um núcleo de moradores que advoga por ele, o Credit Suisse se mantém pelo poder quase invisível, em comunicados enviados em cartas e na gradual modernização dos espaços. O ponto de vista do documentário é quase como uma mosca que fica passando entre os ambientes, observando as movimentações e mudanças enquanto aos poucos o que é antigo naquele lugar vai se tornando ultrapassado e as novidades superficiais vão ganhando espaço. É um combate entre gerações, como se muito do Brunaupark tivesse parado no tempo, da convivência cordial entre vizinhos, passando pelo quiosque tradicional de pizza, até os apartamentos e o estilo de vida dos que ali vivem. As habitações modernas instaladas parecem sem graça, puramente criadas para ganhar dinheiro, modernas, mas sem personalidade. O novo café, aberto ao lado do fantasma da pizzaria que foi obrigada a se retirar, é mais um daqueles lugares de decoração estéril, perfeito para trabalhar com seu computador, não conversar com ninguém e tirar uma foto do seu café bonito para o instagram. Aos poucos, esses conflitos de tempo e de imagem se chocam durante o filme.
Entre os passeios de elevador e as conversas em sacadas, se vê que a questão da moradia está bastante complicada em Zurique, embora o letreiro final informe um aumento de 12% nos aluguéis em 3 anos, o mesmo que apenas um ano em São Paulo (cidade de onde escrevo). São os encontros com um homem que busca abrigo nos corredores mais escondidos do Brunaupark que vemos as maiores fragilidades desse sistema, não é só a possibilidade de despejar centenas de pessoas e jogá-las à própria sorte para encontrarem outro lugar dentro de suas possibilidades financeiras, mas é também a crise que acontece com todos em Zurique, com cada vez menos chances de encontrar um lugar para viver em segurança e que possam pagar. O velho senhor diz que já não há nem mais pontes para se abrigar, outra moradora diz que é impossível pagar aluguel em algum prédio com seu salário, enquanto isso, jovens adultos falam sobre enriquecer, fumam cigarros eletrônicos e se contentam com estadias caras em lugares temporários. O tempo da comunidade, em que crescer, formar família e construir toda uma estrutura social na vizinhança parece estar chegando ao fim, substituído por moradores barulhentos com suas próprias festas, sem ligar para a perturbação com os outros ao seu redor.
Enquanto os moradores antigos do Brunaupark resistem e adiam sua demolição, a crise em Zurique continua, bancos são vendidos, o poder do dinheiro muda de nome mas as pessoas ainda são apenas peças insignificantes, só o lucro importa. Assim, o filme busca o que há de melhor em toda a tradição dessa grande estrutura física, mesmo que se mantenha nesse lugar distante do observador passivo, captando o que une as vidas e a representação de algo que, em breve, pode não existir mais.
Esse texto faz parte da cobertura do Visions du Réel - Festival Internacional de Cinema de Nyon 2024
Nota da crítica:
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