Ruth Beckermann confronta cultura e educação, observando a evolução da população de imigrantes na Europa por meio de suas crianças
Algumas perguntas simples podem parecer desafios enormes, quando são colocadas em um novo idioma. Demora um pouco até que o espectador mais estrangeiro ainda a esse universo compreenda que em Favoriten as crianças não falam alemão como sua primeira língua, e por isso até as somas mais banais levam tempo até serem resolvidas. Durante três anos da formação básica dessas crianças, Ruth Beckermann acompanha quase que totalmente passiva seus dias na escola com a mesma professora, a também imigrante Ilkay, uma mulher determinada a ensinar além do ponto de vista cultural proposto em cada casa, e a utilizar a sala de aula como janela para o mundo, de outras visões, formas de ser, mas principalmente, de tornar o alemão uma língua totalmente presente e natural para que essas crianças possam se desenvolver com mais tranquilidade em suas novas realidades, as da Europa.
Os muitos hijabs vistos em cenas com mães e professoras já explicam que tudo que Ilkay quer propagar também passa por uma religião atrelada desde o berço, não é apenas somar números que importa a essa professora, mas oferecer a essas crianças a noção de respeito às escolhas e aos gêneros, conhecimento de outras religiões, entendimento dos conflitos mundiais e guerras e a lidar com seus próprios embates culturais e sociais em classe. Por meio da câmera da equipe, e dos celular entregues às crianças, o documentário extrai a importância da educação e dos professores na formação da sociedade, muito além de números e letras, a sala de aula é um lugar de desenvolvimento humano que amplia as visões construídas em casa, respeitando as particularidades de cada um, mas permitindo uma compreensão do mundo ao redor e como se inserir nele.
Os pequenos alunos crescem ao longo dos anos, enquanto o filme puramente acompanha seus momentos na escola. O que ocorre em suas casas, seus passados e futuros, pertencem a eles, a observação de Beckermann se importa com a educação e esse crescimento da população de imigrantes sendo confrontada culturalmente. Muitas famílias encontram em Viena um refúgio de situações de guerra em seus países de origem e, com isso, as crianças são obrigadas a enfrentarem uma nova vida. Em casa, o alemão é pouco falado, algo ressaltado diversas vezes pela professora e nas conversas com alunos e pais, é como se o ambiente familiar fosse um pedaço da terra natal, em que a cultura e o idioma permanecem, e a escola é o território em que essa visão se amplia e novas coisas são aprendidas e vividas. Quando a professora questiona as crianças, a câmera permanece fixa fitando seus rostos confusos, tentando encontrar respostas, e o mesmo ocorre quando falham em suas notas e a frustração os leva às lágrimas. É essa lente quase intrusiva, que passa despercebida por eles, que nos leva a uma humanidade quase esquecida, de quando viver ainda era tão novo para nós quanto para eles. Parece até crueldade tudo que se espera dessas crianças, depois de Favoriten nos colocar tão próximos a elas que não apenas sentimos empatia, como nos projetamos nelas.
Do começo, em que muitos alunos relatam que suas mães trabalham como donas de casa e estão grávidas, até as meninas próximas ao final daquela etapa educacional atestarem que não querem se casar no futuro, vê-se que o amadurecimento e os ensinamentos abriram em suas mentes uma nova janela de possibilidades. Ilkay ensina às crianças assuntos que possivelmente seriam condenados em diversos lugares e escolas, até (ou principalmente) pelos pais conservadores brasileiros, como sobre seus próprios corpos. Ainda que a escola sofra pela falta de recursos, os professores fazem seu máximo para que aquelas pequenas pessoas em formação aprendam a pensar por si mesmas, questionar, se comunicar e viver em sociedade. É claro que, ao observar tudo isso, se tira também que a crescente imigração faz com que as novas gerações se desenvolvam afastadas de suas raízes culturais, daí a importância da visita à mesquita, de deixar que eles falem da Síria ou de outros lugares de onde vieram e que possuem conflitos tão relevantes a serem discutidos quanto a guerra da Ucrânia, mas é justamente essa formação, que amplia e não limita, que os permite levar suas próprias visões para debate, partilhando com os colegas suas bagagens e ensinamentos.
Favoriten - que leva o nome do bairro considerado uma das zonas mais diversificadas de Viena - é uma ode à educação e aos profissionais que dedicam suas vidas, independente das condições que encontram, a formar seres humanos com pensamento crítico, e que levam o aprendizado além da visão exclusiva de suas casas e culturas, construindo comunidades plurais e pensadoras.
Esse texto faz parte da cobertura do Visions du Réel - Festival Internacional de Cinema de Nyon 2024
Nota da crítica:
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