Recuperando fragmentos de toda uma vida em vídeos caseiros, Maria Stoianova remonta as crises de uma nação em paralelo a sua própria jornada
Quando Maria nasceu, a União Soviética não era mais jovem, nem a presença da Ucrânia em sua formação, pelo contrário, o nascimento da diretora, retratado no filme, já soa como um prenúncio do fim, basta olhar para a data marcada digitalmente nas fitas exibidas. A presença da câmera para a família foi como a chegada de outra criança, uma novidade muito bem-vinda e presente a cada momento, congelando para a eternidade um período do tempo em que Maria nasce e cresce, seu pais viajam entre países, mas principalmente, sem querer, capturam todas as mudanças ao seu redor. Ao recuperar esses fragmentos em fitas de 86 a 94, Maria Stoianova acaba por criar um filme que observa a queda da União Soviética e a busca da Ucrânia por independência como plano de fundo para sua própria trajetória familiar. As viagens do pai, um patinador artístico de gelo, exibem um olhar de desejo pelo mundo capitalista, já que é no Canadá ou em outros lugares estrangeiros que o homem carrega sua câmera sempre ligada, sorrindo a cada nova descoberta. As possibilidades de compras de bens materiais, bem como de acesso a coisas limitadas em sua nação de origem, são atrativos largamente explorados nas filmagens e na narração que acompanha as cenas, sempre destacados em contraste às condições de vida na Ucrânia, de lugares apertados, caixas empilhadas e baratas caindo do teto.
As imagens todas pertencem ao passado, em um filme composto 100% por vídeos de arquivo, mas a voz que acompanha tudo está no presente, a narradora também explora sua própria vida e história e conta no hoje o que vê, o que juntou de informações, conversa com o espectador nesse paradoxo temporal entre uma queda iminente que se liga de forma direta com o estado atual de seu país. Não é que exista uma forte mensagem política pregada a cada cena, nem que essa relação complexa com a União Soviética só veja seus lados negativos, é um olhar puramente de quem viveu uma vida específica, comum, um recorte de uma sociedade com todas as suas nuances. No mesmo grupo de patinadores do pai de Maria, por exemplo, existem aqueles mais afetuosos com o socialismo, mas em sua casa o capitalismo sempre pareceu uma terra prometida. Da mesma forma, a situação atual da Ucrânia não é uma pauta nem um pouco evidente, mas existe ali como um fantasma na narrativa, são as consequências óbvias desse grande lago de gelo se partindo em pedaços que levam a uma guerra longa, com estilhaços até hoje. Portanto, nessa construção de um documentário tão íntimo e individual, dentro de um núcleo familiar, Fragments of Ice permite que tudo que existe no fundo e nas beiradas, nos contextos e significados, dialogue de uma forma mais generalista sobre questões políticas e ideológicas. Mas, dentro de sua própria percepção, a visão parece se alinhar à da criança crescendo em tela, confusa em alguns pontos, afetada em outros, buscando nos pais alguma direção, como alguém dando os primeiros passos em algo prestes a rachar, olhando para trás para compreender como se chegou até ali.
Existe quase uma intenção meditativa no escutar da voz de Maria, muitas vezes em ucraniano, poucas em russo, ainda que existam outras vozes em tela, nos diálogos captados nas muitas fitas editadas por sua equipe. A não compreensão do idioma realiza quase uma quebra, são muitos minutos lendo legendas sem parar enquanto as imagens mudam e nem sempre se conectam obviamente ao que está sendo dito, visto que a narração conta uma história hoje e os vídeos foram feitos no passado, sem ideia de sua utilidade futura. Maria abre muitas aspas a coisas que seu pai ou sua mãe disseram, relata sentimentos, acontecimentos, dá profundidade e contexto ao que está mostrando, mas essa grande trilha de áudio, quase um monólogo, parece algo muito mais agradável de se apreciar quando se compreende a língua, sem precisar desgrudar os olhos das cenas. É curioso como ao longo de todos os minutos ela mantém seu tom de voz tão sereno e em uma constante e, ao fim, o texto em tela parece transbordar algo mais intenso, uma raiva ou tristeza, difícil de se identificar apenas nas letras sobre o fundo preto.
A diretora nunca cruza essa linha, mantém a reflexão do que é mais complicado nos conflitos políticos para seu fundo, ou para seus personagens - como no caso da cena mais direta de uma discussão entre um comunista e um simpatizante do capitalismo -, na camada mais próxima do espectador ficam suas relações familiares, os olhos brilhantes do pai a cada visita ao capitalismo, em tela, enquanto suas cargas horárias elevadas e a distância imposta pelos empregos pós dissolução da União Soviética existem apenas textualmente, na narração. O papai noel vestido de azul, confuso com as meninas que falam em russo, em tela, enquanto a própria dúvida de Maria sobre sua nacionalidade é apenas relatada por sua voz. Não falta profundidade em Fragments of Ice, nem maiores questionamentos, ele retrata bem uma situação complexa pelos olhos daqueles que a viveram, e vivem, despreparadamente, com soluções minimalistas que exploram algo mais familiar em primeiro plano, deixando as investigações mais difíceis para um diálogo além do filme.
Esse texto faz parte da cobertura do Visions du Réel - Festival Internacional de Cinema de Nyon 2024
Nota da crítica:
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