Explorando de forma soturna a atmosfera que cerca uma freira ortodoxa, Cécile Embleton e Alys Tomlinson transformam seu interesse particular em um retrato poético de opressão e libertação
As cenas que abrem o longa parecem extraídas de um filme de horror, as freiras ortodoxas se unem em uma espécie de porão, com suas roupas pesadas e escuras, apenas com a luz de poucas velas iluminando seus rostos e os livros que leem. Poucas vezes se vê em um documentário imagens que brinquem tanto com um gênero como essas, partindo da realidade cotidiana dessas mulheres religiosas, mas criando um imaginário obscuro ao seu redor pela remoção total das cores - que nesses momentos mais parece que a ausência de luz é incapaz de as transmitir do que uma escolha estética da fotografia - com o som tão focado no silêncio que as cerca, preenchendo todo ambiente quando a voz aparece. Unindo a maior parte de seus cristãos, a Igreja Ortodoxa Bielorrussa é a maior organização religiosa do país, e onde a freira Vera mora, a igreja parece ser o centro de tudo, de uma pequena comunidade onde todos se conhecem e os representantes da fé se tornam quase gestores das questões locais. Ao acompanhar os dias dessa freira, passando por datas importantes no calendário religioso, o preto e branco parece a oprimir e destacar, seu rosto sempre muito claro em relação às roupas que só deixam essa porção de pele aparecer, a neve grossa que abarrota os cenários abertos enquanto Vera passa como um ponto escuro e as obras de arte que preenchem as igrejas e, sem cor, captam as freiras que se posicionam em sua frente como parte de suas composições.
A intenção, na verdade, partiu de um projeto de fotografias em que uma delas retratava Vera em preto e branco e a partir disso, as diretoras britânicas encontraram algum fascínio em sua figura. O que se segue nas imagens é uma descoberta além delas, além do rosto calmo e do sorriso tímido da freira, da admiração daqueles que frequentam a igreja e de sua postura séria. São trechos de sua voz, colocados acima de paisagens e imagens contemplativas dos cenários gélidos, em planos abertos, que contam a verdadeira história de Vera, como nunca quis ser freira, a descoberta do HIV e seu passado conturbado envolvendo drogas e um amor nocivo. Não vemos o rosto da mulher ao contar o que realmente sente e relembrar sua trajetória, mas reconhecemos a calma em sua voz, a mesma com que fala com os cavalos. Esse paralelo traçado explora um contraste entre as imagens apresentadas que, mesmo que assustadoras ou estranhas, não levantavam a possibilidade de Vera não estar feliz com seu papel dentro da igreja. O preto e branco além de criar toda essa atmosfera poética e de opressão, também acaba por deixar a mise-en-scène mais “limpa” concentrando o olhar em pontos específicos o que, mais uma vez, aliado a um trabalho de som que preza pelo silêncio, não questiona a igreja, nem a posição de cada pessoa, apenas observa e por meio de seus retratos, exprime a rigidez que a ortodoxia carrega.
É portanto a própria mulher que conta sua história e questiona a si mesma, por sua narração e pelo desenrolar de suas atitudes. Mesmo que as cenas a mostrem contente, seja com seus animais ou ao redor de sua família, Vera mostra inquietude em seu discurso, o que impacta pela dureza das imagens. É assim que a cor é inserida no momento em que ela assume novamente seu nome de nascimento, Olga, e remove as vestes de freira. Ainda que a fotografia revele as cores de Olga e do mundo, mudando de cenário e idiomas, é ainda sua narração que revela a verdade sobre as roupas queimadas e toda uma vida deixada para trás. A mulher, a freira, a aprendiz com os cavalos, são todas figuras de uma mesma pessoa que não se abre por completo diante do espectador, as diretoras constroem um fascínio pelo seu mistério em tela enquanto o som costura pedaço a pedaço algumas pistas, mas é só à própria Olga que pertence sua história. No fim, a fotografia que inspirou o filme, captando em uma imagem o interesse pelo ícone, se transforma em um longa com o mesmo efeito, uma representação, uma ilustração, com uma profundidade impossível de ser desbravada, instigando quem observa.
Esse texto faz parte da cobertura do Visions du Réel - Festival Internacional de Cinema de Nyon 2024
Nota da crítica:
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