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Visions du Réel 2025 | The Town That Drove Away

Grzegorz Piekarski e Natalia Pietsch operam, no contraste de seus registros, um documento sensível sobre a história da humanidade afogada em nome do progresso

The Town That Drove Away

Hasankeyf, na Turquia, é habitado há mais de 10 mil anos e é considerado um dos povoados mais antigos do mundo. Assistiu impérios passarem e dividiu suas terras com Curdos e Árabes por diversas gerações. Mas, alguns anos atrás, tudo isso afundou na água, a história do lugar, de sua cultura e da humanidade hoje não é mais habitada por pessoas, se tornou uma represa. A construção planejada pelo governo não só inundou Hasankeyf como outras centenas de povoados. O South Eastern Anatolia Project criou 22 represas e, para isso, mais de 350 mil pessoas foram forçadas a se realocar. Essa introdução bastante pragmática pouco tem a ver com o tom que The Town That Drove Away propõe para contar a mesma trajetória. O filme, de Grzegorz Piekarski e Natalia Pietsch, filma essa mudança de forma muito mais humana e pesarosa, como um documento do tempo, a observação de um pedaço da história naufragando diante das câmeras.


É possível identificar o ponto de divisão narrativa em The Town That Drove Away que intensifica sua proposta. A partir de sua abertura, as imagens exploram as paisagens de Hasankeyf como pinturas. As cenas sempre parecem em movimento junto com os animais e a cidade, as pessoas caminham, as cores decoram seus lares e roupas. Há uma vida diferente a ser registrada, que passa a se apertar entre os tratores. Homens reclamam da destruição, equipamentos de som passam mensagens sobre a realocação da população e um sorteio de novos apartamentos para as famílias. Todos são instruídos a se organizarem o quanto antes pois, após a mudança, não poderão mais retornar. 


A câmera se une ao movimento orgânico das coisas, por vezes são animais em rebanhos, paralelamente aos avisos de que eles não poderão ser levados à nova cidade, apenas os de pequeno porte e domésticos. Em outros momentos, tratores parecem empurrar pessoas, com o som estridente de seus movimentos invadindo o cotidiano dos moradores. Há uma opressão ironicamente silenciosa, em que pessoas parecem abaixar as cabeças tristemente conformadas com a imposição, enquanto um ou outro revelam suas revoltas, mas pouco podem fazer. A presença dos equipamentos de destruição é a metáfora a poderes maiores que pretendem enterrar a história e esperam apenas submissão em troca.


Quando todos saem de Hasankeyf, agora chamada de Velha Hasankeyf, The Town That Drove Away permanece observando sua paisagem até que a última luz se apague, literalmente. Há uma sensibilidade muito única nesse registro, de cineastas que não se colocam na narrativa, mas captam sua importância e seu pesar de forma muito sublime. 


Ao chegar na nova cidade, o movimento tão natural que o filme transmitia em suas cenas, cessa. A sensação que as imagens passam a partir desse momento é de pura estagnação e esterilidade. As casas agora são padronizadas, não há cor nem vida e, visto de cima, o lugar se assemelha a uma maquete, um projeto puramente burocrático, sem passado, nem história. Os equipamentos de som avisam que as casas não podem ser modificadas, sublinhando que aquelas pessoas não possuem os imóveis, apenas residem neles. As árvores ainda estão para ser plantadas, novamente seguindo um padrão.


O contraste muito bem estabelecido pela condução de The Town That Drove Away traduz a morte de uma cidade que era lar, herança e tradição, para que o novo lugar seja apenas prático, voltado a cumprir funções. Casas são para se morar, não para viver. Árvores são para criar sombras, não parte fundamental da paisagem. Animais são domésticos e não existem mais para o cultivo, alimento e trabalho das famílias. Quando o tempo passa, as pessoas parecem infelizes, assim como as cenas amplas mostram a diferença entre uma paisagem que se tornou memória e outra que é emprestada e monocromática. A água cobre as ruínas que foram por mais de 10 mil anos as vidas de tantas famílias, enquanto o governo comemora os feitos em sons que atravessam as janelas e se misturam aos da televisão. Tudo é parado, tudo é lamento. 


Grzegorz Piekarski e Natalia Pietsch fazem suas imagens falarem por eles e com pouco mais de uma hora, deixam muito claro como a história da humanidade não pode ser realocada, apenas destruída e substituída por uma maquete plástica. São os rostos e vidas mostrados em The Town That Drove Away que trazem a força da resistência da última luz que se apaga e a dor de os ver sem alternativa, guardando apenas na lembrança tudo que foram obrigados a deixar para trás.  



 

Nota da crítica:

3.5/5


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