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Foto do escritorRaissa Ferreira

Viver (Ikiru) - 1952

Viver, de Akira Kurosawa - Por Raissa Ferreira

Viver (Ikiru)

Antes de morrer, um homem precisa aprender a viver. Como em outras obras de Kurosawa, Viver também contém uma essência tirada da literatura, nesse caso A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói. Porém, enquanto as poucas páginas do livro russo se dedicam a destrinchar a progressão da morte e toda a solidão e reflexão contidas nesse processo doloroso, o filme Japonês, como já denuncia o título, importa-se mais com a vida. Tanto é que não há nenhum rodeio em informar ao espectador que o protagonista está doente, sendo possível conhecer primeiro o seu estômago do que o seu rosto, a sua doença do que o seu nome e a sua sentença muito antes de qualquer apresentação. Watanabe (Takashi Shimura) não só está morrendo como já não vive há mais de 20 anos, o que se vê soterrado em papéis na repartição pública é apenas uma múmia do que já foi um homem. Essa sociedade estagnada em que Watanabe está inserido mais parece com O Processo, de Kafka, enquanto Kurosawa brinca pela montagem inserindo as diversas barreiras burocráticas que impedem o andamento de um simples pedido da população. O lugar escuro, abarrotado de pilhas e pilhas de folhas de papel, não pretende resolver nada, os problemas são jogados de um departamento para o outro, muitas vezes com um sorriso no rosto. O grupo de mulheres que busca solucionar seu problema, rapidamente se transforma no ponto de vista do próprio espectador, algo similar ao que Kurosawa fez dois anos antes no marco do cinema Rashomon, em que todos os julgamentos são voltados para a câmera, colocando quem assiste na posição de juiz e júri. Mas em Viver, os tomadores de decisões são os funcionários da prefeitura e, assim, os observadores são colocados em uma posição mais vulnerável, lançados de desculpa em desculpa em uma interminável burocracia que não chegará a lugar nenhum. O tempo dedicado a mostrar esse mecanismo é fundamental para compreender como Watanabe passa seus dias há décadas, quase 30 anos sem uma falta sequer, carimbando papéis e indicando para qual mesa cada problema deve ser levado. Para os muitos funcionários abaixo dele, o homem é quase um fantasma, uma sombra do que já foi alguém, que só ocupa uma cadeira dia após dia. 


Enquanto Ivan Ilitch mergulha na morte e definha aos poucos, Kurosawa busca o que ainda existe de vida em seu protagonista. É engraçado que um diretor tenha feito essa obra tão distante de seu próprio fim, na verdade muito mais perto de seu auge, já que Rashomon tinha acabado de ser um sucesso no Festival de Veneza. Há muita vida no filme, mas uma vida que só existe pela proximidade com a morte, um último impulso de existir antes de deixar o mundo, a última chance. Para um estudo de personagem tão próximo, Kurosawa não busca o desfoque do mundo ao seu redor, pelo contrário, necessita totalmente de tudo que o cerca. É essencial para a jornada de Watanabe tudo que o soterra, que o engole e sufoca, dos papéis que formam grandes colunas às pessoas embriagadas da vida noturna. O homem que precisa aprender a viver não sabe mais por onde começar, retorna ao passado em pensamento tentando entender os momentos desperdiçados depois de ter morrido em vida, no luto da esposa. Assim como o marasmo do emprego, a vida em família não lhe traz grandes possibilidades, tudo o que perdeu na relação com o filho, ao priorizar o seu trabalho, resulta em uma conexão bastante falha e insensível. Watanabe não encontra em casa o que precisa para se redimir antes de morrer, busca então em desconhecidos alguma orientação. A vida noturna guiada pelo homem estranho que encontra no bar sepulta ainda mais o moribundo, dessa vez nas multidões, no sufocar de um escape da vida. A melancolia de Watanabe parece até contagiosa, sendo capaz de quebrar os momentos mais frenéticos dessas pessoas. Seu próximo encontro é com a juventude, com o olhar mais fresco para a vida que sua funcionária pode lhe emprestar. A cada etapa, a atuação de Takashi Shimura emprega uma humildade belíssima a seu personagem, com seus olhos sempre muito grandes olhando de baixo para cima, muitas vezes cobertos por sombras, criando uma composição de um homem assustado com a dimensão tanto da morte quanto do viver, misturado a um fascínio quase infantil com todas as possibilidades a serem desbravadas.


Kurosawa ressalta um contraste de ritmo entre as crianças, mais próximas do nascimento do que da morte, com seu protagonista, a quem restam poucos meses de existência. Sempre que os bem jovens passam perto do homem, estão correndo e em velocidade mais acelerada, deixando o velho senhor ainda mais lento. Muito em Viver está nessa lentidão, da burocracia e do quanto tempo se perde em coisas inúteis e, assim, já se passa de 1 hora e tanto quando finalmente Watanabe resolve viver, movimenta-se de verdade nesse sentido, e a condução sempre nada sutil do diretor japonês coloca um crescente “parabéns pra você” para tocar ao fundo. É hora de nascer e ser ágil, o que para Watanabe parece significar deixar algum feito significativo. O senhor que descobriu logo no começo que teria poucos meses, canta que a vida é curta e bem na hora em que o filme poderá mostrar a múmia se tornando humana, Kurosawa quebra a expectativa e se demora em seu velório. Sua figura sentada à mesa no escritório é substituída por uma foto centralizada ao redor dos colegas e familiares enlutados. Mais uma vez, estagnado e sem poder agir, seus feitos são remontados em inserções que se costuram acima de um longo debate. Todos parecem se preocupar em saber se ele sabia ou não que ia morrer, o que soa tão dispensável a quem assiste, já que tudo já havia sido tão revelado. A vida é curta e os homens perdem tempo demais com coisas pequenas.


No processo lento que leva todos a compreenderem que sim, Watanabe sabia que ia morrer e por isso decidiu viver em seus últimos meses, finalmente desafiando os sistemas para resolver algo para a população e deixar uma marca na vida daquelas pessoas, tanto emocionalmente, por as atender e ouvir, quanto fisicamente, pela presença do parque construído, seus feitos parecem proporcionar alguma inspiração. A profundidade, a qual retrata cada pessoa e elemento, usada por Kurosawa para sempre lembrar que todo ser humano existe dentro de um contexto, das pessoas que o cercam, da sociedade, aparatos, vícios, virtudes e problemáticas, concentra todos aqueles homens juntos em uma euforia que vem de alguns dos maiores incentivadores sociais: a proximidade com a morte e o álcool. No entanto, a máquina continua a girar como sempre e, no dia seguinte, a figura do chefe, agora realmente morto, é substituída por outro senhor daquele departamento, na mesma mesa, com as mesmas pilhas de papéis e apenas um único sobrevivente é capaz de lembrar da essência extraída do dia anterior. Incrivelmente, Viver consegue ser pessimista em sua visão do funcionamento da sociedade, com todas as suas críticas bastante claras, enquanto tem algum otimismo muito doce por aqueles que decidem viver, as almas soterradas e estagnadas que ainda podem ter lampejos, nascer e se movimentar. É fácil lembrar desse notável diretor por suas grandes obras, das mais importantes ao cinema e os épicos com Samurais, mas, certamente esse é um de seus mais belos trabalhos, um lindo lembrete de Kurosawa de que a vida é curta, então é preciso viver enquanto há tempo.  



Esse texto foi originalmente escrito para o catálogo da mostra Kurosawa Kurosawa da Cinemateca do MAM em fevereiro de 2024


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