Ao expor a história de Nasubi com o próprio formato que o aprisionou, Clair Titley continua a manipulação e humilhação da imagem desse homem, fugindo de qualquer crítica
A fama excêntrica da televisão Japonesa é bastante difundida no ocidente, de programas absurdos e formatos que não compreendemos direito, embora nossa própria cultura do entretenimento nesse segmento possa ser bastante questionável também. É apostando nesse conhecimento prévio que O Competidor ambienta a história que vai contar nesse cenário, jogando imagens dos programas japoneses da forma como já esperamos e imaginamos para que a chave, o reality A Life In Prizes (Uma Vida em Prêmios), nem soe tão fora do que esses produtores já fariam normalmente. É surpreendente, no entanto, conhecer apenas agora algo tão surreal, um programa que filmou 24 horas por dia um homem sem roupas, passando fome, e preenchendo cupons de sorteios para tentar sobreviver. Para facilitar essa pintura apresentada ao espectador hoje, por meio de um streaming, o Hulu, a diretora britânica Clair Titley traz uma conterrânea para falar em sua língua sobre os acontecimentos. Entre a jornalista britânica, vizinha do canal responsável pelo reality, as letras escritas no papel por Nasubi em japonês sendo alteradas na tela para o inglês e as narrações dublando sua voz, já dá pra perceber que se a cineasta em algum momento cogitou realizar uma crítica aos terríveis acontecimentos retratados em seu filme, se perdeu e acabou apenas levando a mesma manipulação e humilhação traduzida para que o ocidente agora também possa rir desse homem.
Ocorre que o absurdo da questão é levantado, mas o desenrolar só expõe ainda mais a crueldade por meio dos mesmos dispositivos que o produtor Tsuchiya, tido como vilão, usava para explorar a imagem de Nasubi para ganho próprio. O Competidor ainda faz questão de recriar em sua tela a moldura de uma televisão típica da época do televisionamento, sempre que passa as longas imagens de arquivo, enquanto o espectador do filme é colocado na posição de consumidor do reality show. Os risos que se ouvem na sala de cinema atestam que a maior dor de Nasubi segue bastante viva, as pessoas ainda estão rindo dele.
Clair Titley tem todas as ferramentas à sua disposição, e enquanto documentário, isso é sempre um grande potencial para a narrativa. Tanto produtor quanto participante estão presentes em entrevistas, a mãe, a irmã e até um antigo colega de Nasubi compõem o filme, além de todas as imagens e acesso às pessoas que pensaram e fizeram o reality, O Competidor angariou tudo que precisava para seguir qual caminho quisesse ao contar essa história, mas, no fim, Titley se recusa a confrontar a crueldade, a questionar a ética da televisão e legitimar a dor de Nasubi por meio de seu documentário. Ainda que o formato flerte com esse reconhecimento das problemáticas, pelo simples atestar dos fatos, se coloca nessa posição acovardada e leva pouco tempo para que as sucessivas imagens de Nasubi pelado, deixado com fome naquele apartamento apertado, se valendo dos mesmos recursos narrativos que o programa de televisão utilizava para ridicularizar sua situação, comecem a embrulhar o estômago de quem assiste.
É como observar uma lenta tortura cena após cena, em que o filme deixa longos momentos se passarem com imagens de arquivo explorando o sofrimento de Nasubi sem propor nada acima desse retrato, apenas deixando que a mesma linguagem de humilhação se propague, trazendo traduções e dublagens para facilitar aos espectadores que entendem inglês. Em meio a isso tudo, a mãe e a irmã do competidor relatam seus sofrimentos, e o próprio esclarece como realmente se sentia naquela posição. É até sádico como O Competidor coloca lado a lado Nasubi com o produtor do programa enquanto um fala sobre o outro e, pior ainda, quando o escuta falar tristemente sobre suas questões vividas no reality e passa a expor com a mesma naturalidade suas imagens de tortura.
Ao ponto em que Nasubi é liberado, após um ano de filmagens de seu corpo nu, com fome, fazendo de tudo para ganhar o que precisava para sobreviver e atingir o objetivo que o faria livre, o desgaste de assistir aquelas imagens se torna tão grande que, quando o documentário expõe que ele viverá tudo aquilo novamente, a expressão facial de Nasubi se torna dilacerante. É inacreditável o tamanho da crueldade humana, mas mais absurdo ainda é como Clair Titley segue completamente ausente criticamente, e enquanto seu próprio entrevistado explica como foi manipulado para seguir em frente, o filme parece quase caçoar dele, inserindo suas imagens comendo batatinhas com risadas gravadas ao fundo. Alguns vão lembrar de Oldboy aqui, ao passo que Nasubi é lavado à Coreia e seus cabelos não param de crescer em mais uma etapa de sua prisão televisionada, mas além dessa possível influência, certamente o reality Uma Vida em Prêmios levanta diversas questões sobre ética na televisão, nenhuma delas comprada por O Competidor, que se mantém em um lugar de expor a tortura de Nasubi, se disfarçando de crítica condescendente, mas manipulando sua imagem para benefício próprio, agora no streaming, para facilitar que as humilhações sofridas pelo homem nu, coberto por um desenho de berinjela, cheguem a mais lugares no mundo.
Certamente a parte mais cruel se dá quando o longa passa na íntegra a exposição final de Nasubi, nu em um palco de auditório lotado, já levado psicologicamente a um estado quase animalesco, tendo todo seu poder de escolha removido. Ao optar por passar esses vídeos completos, sem nenhuma construção crítica acerca de todos os fatos, Clair Titley atesta sua cumplicidade com o objetivo do reality. É tarde demais quando ela tenta fazer alguma conexão positiva à humanidade de Nasubi, em uma mensagem motivadora mequetrefe que parece ignorar completamente aquilo tudo que o próprio filme colocou em tela. Soa tão cruel e manipulador que a única conclusão que parece possível retirar de O Competidor é que Nasubi continua a ser explorado pela televisão, agora em uma era mais moderna, entregando sua imagem a mais países ao redor do mundo.
Nota da crítica:
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